sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Vídeo: Florestan Fernandes - Evocações na Contramão


Na Praça da Sé, um repentista canta, em forma de cordel, a vida de Florestan Fernandes, importante sociólogo brasileiro. O repente abre caminho para os depoimentos dos companheiros de cátedra, de gabinete e de militância de Florestan. Contam de suas idéias, sua visão crítica sobre o Brasil, seus ideais e decepções durante a vida pública. Imagens que marcaram a vida de Florestan: o senado, a universidade, a família. O cordel revela o ponto de vista do povo sobre a história recente do Brasil, com suas lutas e desafios, que como Florestan, insistia em lutar contra as correntes.

Para ver o vídeo clique na imagem ou aqui!


segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

As tragédias urbanas: desconhecimento, ignorancia ou cinismo?

Por paradoxal que possa parecer, a proposta de Reforma Urbana – e a terra urbana, sua questão central- desapareceu da cena política após a criação do Ministério das Cidades

Por Erminia Maricato

Todos os anos, no período das chuvas, as tragédias das enchentes e desmoronamentos se repetem. Os mesmos especialistas, hidrólogos, geólogos, urbanistas repetem as soluções técnicas para enfrentar o problema. A mídia repete a ausência do planejamento e da prevenção aliada à falta de responsabilidade e “vontade política” dos governos (muitos dos jornalistas como os colunistas globais, donos da verdade, se esquecem de que pregaram o corte dos gastos públicos e das políticas sociais durante duas décadas). As autoridades repetem as mesmas desculpas: foram muitos anos de falta de controle sobre a ocupação do solo (como se atualmente esse controle estivesse sendo exercido), mas “fizemos e estamos fazendo...”. Todos repetem a responsabilidade dos qu e ocupam irregularmente as encostas e as várzeas dos rios como se estivessem ali por vontade livre e não por falta de opção.

Tragédias decorrentes de causas naturais são inevitáveis e irão se ampliar com o aquecimento global que atualmente é um fato indiscutível. Um serviço de alerta de alto padrão pode minimizar problemas como mostram exemplos de sociedades menos desiguais e que controlam, relativamente, a ocupação do território. Mesmo no Brasil há soluções técnicas viáveis mesmo se considerarmos essa herança histórica de ocupação informal do solo. Mas não há solução enquanto a máquina de fazer enchentes e desmoronamentos – o processo de urbanização - não for desligada.

Desligar essa máquina e reorientar o processo de urbanização no Brasil implica contrariar interesses poderosos que dirigem o atual modelo que exclui grande parte da população da cidade formal. A imensa cobertura midiática dos acontecimentos silenciou sobre os principais fatores que impedem a interrupção da recorrência e da ampliação dessas tragédias anuais. Vamos tentar dar “nomes aos bois”.

A principal causa dessas tragédias é do conhecimento até do mundo mineral: a falta de controle sobre o uso e a ocupação adequada do solo. Parece algo simples, mas é profundamente complexo, pois controlar a ocupação da terra quando grande parte da população é expulsa do campo ou atraída para as cidades, mas não cabe nela, é impossível.

Controlar a ocupação da terra quando esta é a mola central e monopólio de um mercado socialmente excludente (restrito para poucos, apesar da ampliação recente promovida pelos programas do Governo Federal) viciado em ganhos especulativos desenfreados, é inviável. Os trabalhadores migrantes e seus descendentes, não encontram alternativa de assentamento urbano senão por meio da ocupação ilegal da terra e construção precária, sem observância de qualquer lei e sem qualquer conhecimento técnico de estabilidade das construções. A escala dessa produção ilegal da cidade pelos pobres (i.e. maioria da população brasileira) raramente é mencionada.

Nas capitais mais ricas estamos falando de um quarto a um terço da população - SP, BH, POA -, metade no RJ e mais do que isso nas capitais nordestinas. Nos municípios periféricos das Regiões Metropolitanas essa proporção pode ultrapassar 70% até 90%. Áreas vulneráveis, sobre as quais incide legislação ambiental, desprezadas (de modo geral) pelo mercado imobiliário são as áreas que “sobram” para os que não cabem nas cidades formais, e nem mesmo nos edifícios vazios dos velhos centros urbanos cujos números são tão significativos que dariam para abrigar grande parte do déficit habitacional de cada cidade.

Mas, quando um grupo de sem teto ocupa um edifício ocioso que frequentemente acumula dívida de milhões de reais de IPTU, no centro da cidade formal , ação do judiciário, quando provocada, não se faz esperar: a liminar é rápida ainda que esses edifícios estejam bem longe de cumprir a função social prevista na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. Enquanto isso, aproximadamente milhões de pessoas, sim milhões, ocupam as áreas de proteção ambiental: Áreas de Proteção aos Mananciais, várzeas de rios, beira de córregos, mangues, dunas, encostadas que são desmatadas, etc. Não faltam leis avançadas e detalhadas. Também não faltam Planos Diretores.

Quando se fala em solo urbano ou terra urbana é necessária uma ressalva: não se trata de terra nua, mas de terra urbanizada. A localização da terra ou do imóvel edificado é o que conta. Há uma luta surda e ferrenha pelas melhores localizações, assim como pela orientação dos investimentos públicos que causam aumento dos preços e valorização dos imóveis em determinadas áreas da cidade.

A terra urbana (ou rural) é um ativo da importância do capital e do trabalho. Distribuir renda não basta. É preciso distribuir terra urbana (ou rural) para combater a escandalosa desigualdade social no Brasil.

Quando voltou do exílio, Celso Furtado chamou atenção para a necessidade de distribuir ativos como forma de combater a desigualdade social. São eles, terra e educação. Na era da globalização a terra vem assumindo uma importância estratégica. Conglomerados transnacionais e até mesmo Estados Nacionais disputam as terras agriculturáveis nos países mais pobres do mundo todo. No Brasil ela se encontra sobre intensa disputa no campo ou na cidade.

Infelizmente o Governo Lula ignorou essa questão crucial e a política urbana se reduziu a um grande número de obras, necessárias, porém insuficientes. É verdade que a maior responsabilidade sobre a terra, no âmbito urbano, é municipal ou estadual (quando se trata de metrópoles). Mas é preciso entender porque um programa como o Minha Casa Minha Vida, inspirado em propostas empresariais, causou um impacto espetacular no preço de imóveis e terrenos em 2010.

Financiar a construção de moradias sem tocar no estatuto da propriedade fundiária, sem regular ganhos especulativos ou implementar a função social da propriedade gerou uma transferência de renda para preço dos imóveis. E parte dos conjuntos habitacionais de baixa renda continua a ser construída fora das cidades, repetindo erros muito denunciados na prática do antigo BNH. Os prefeitos que não querem ou não conseguem aplicar a função social da propriedade enfrentam a dificuldade de comprar terrenos a preço de mercado, altamente inflado, para a produção de moradias sociais. Já os governadores, em sua absoluta maioria, ignoram a necessidade de políticas integradas nas metrópoles.

As demais forças que orientam o crescimento das cidades no Brasil estão muito ligadas à essa lógica da valorização imobiliária com exceção do automóvel que ocupa um lugar especial. Ao lado do capital imobiliário, as grandes empreiteiras de obras de infra-estrutura orientam o destino das cidades quando exercem pressão sobre os orçamentos públicos (via vereadores, deputados, senadores ou governantes) para garantir determinados projetos de que podem ser oferecidos ao governante de plantão como forma de “marcar” a gestão. As obras determinam o processo de urbanização mais do que leis e Planos Diretores, pois o que temos, em geral, são planos sem obras e obras sem planos. A política urbana se reduz à discussão sobre investimentos em obras e isso está vinculado à lógica do financiamento das campanhas a ponto de determinar as obras mais visíveis e aquelas que possam corresponder ao cronograma eleitoral.

As obras viárias são priorizadas pela sua visibilidade e, é claro, para viabilizar o primado do automóvel, outro dos principais motivos da completa falência das nossas cidades. Os males causados pela matriz de mobilidade baseada no rodoviarismo, ou mais exatamente pelos automóveis, são por demais conhecidos: o desprezo pelo transporte coletivo, ignorando o aumento das viagens a pé, o alto custo dos congestionamentos em horas paradas, em vidas ceifadas nos acidentes que apresentam números de guerra civil, em doenças respiratórias e cardíacas devido à poluição do ar, na contribuição para o aquecimento do planeta e o que nos interessa aqui, particularmente na impermeabilização do solo.

Parece incrível que em pleno século XXI foi aprovada e iniciada a ampliação da nefasta marginal do Rio Tietê (o governador Serra, candidato à presidência se enroscou no cronograma da obra que ainda levará muito tempo para ser terminada) um equívoco dos engenheiros urbanistas que se definiram pelo modelo rodoviarista para São Paulo e em conseqüência para todo o Brasil. (Ocupar margens dos rios quando estas deveriam dar vazão às cheias do período das chuvas é, como sabemos, contribuir com a insustentabilidade urbana).

Agora os carros e caminhões parados com seus escapamentos despejando poluentes na atmosfera ocupam oito pistas da marginal ao invés das 4 anteriores. Mas essa estratégia não é exclusividade de um partido. Governos de todos os partidos na cidade de São Paulo contribuíram para o deslocamento da centralidade fashion da cidade em direção ao sudoeste produzindo, com pontes, viadutos, obras de drenagem, trens, despejo de favelas, operação urbana e projetos paisagísticos uma nova fronteira de expansão para o capital imobiliário.

As obras de drenagem oferecem um exemplo dos erros de uma certa engenharia que ao invés de resolver, cria problemas. Durante décadas as empreiteiras se ocuparam em tamponar (“canalizar”) córregos e construir avenidas sobre eles, impermeabilizando o solo e permitindo que as águas escoassem mais rapidamente para as calhas dos rios. Agora, quando se trata de reter a água, surge a “moda” dos piscinões. Um mal necessário mas que não passa de paliativo já que o solo continua a ser impermeabilizado e a sua ocupação descontrolada.

Diante desse quadro espantoso, é surpreendente que a questão urbana tenha perdido a importância a ponto de ser quase nulo o seu destaque programas de governo de todos os partidos e estar ausente dos debates nas últimas campanhas eleitorais. Até mesmo a proposta de Reforma Urbana, reconstruída a partir da luta contra o Regime Militar, inspiradora da criação do Ministério das Cidades, que tinha como centralidade a questão fundiária, desapareceu da agenda política. Movimentos sociais estão mais ocupados com conquistas pontuais na área de habitação.

O Ministério das Cidades, criado para tirar das trevas a questão urbana brasileira, combatendo o analfabetismo urbanístico está nas mãos do PP (partido do ex-prefeito e governador Paulo Maluf e ex- presidente da Câmara Severino Cavalcanti) desde 2005. Algumas poucas gestões municipais “de um novo tipo” que surgiram nos anos 1980 e 1990, voltadas para a democratização das cidades, dos orçamentos, das licitações, do controle sobre o solo, ainda tentam remar contra a maré contrariando interesses particulares locais, mas elas são cada vez em menor número diante do crescimento do pragmatismo dos acordos políticos. A Copa e as Olimpíadas e as mega obras que as acompanharão ocupam a preocupação dos gestores urbanos que insistem em concentrar investimentos em novos cartões postais e novas áreas de valorização imobiliária até que a próxima temporada de chuvas traga a realidade de volta por alguns dias e a mídia insista na falta de planejamento e prevenção.

Erminia Maricato é arquiteta, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi coordenadora do programa de pós-graduação (1998-2002), secretária de Habitação de São Paulo (1989-1992) e secretária-executiva do Ministério das Cidades (2003-2005).

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

40 anos do voo da liberdade

Escrito por Umberto Trigueiros Lima (Mazine)
20-Jan-2011


Fazia um calor insuportável no Rio, naqueles dias de janeiro de 1971, 40º à sombra. Lembro que no dia 13 fomos levados para a Base Aérea do Galeão, espremidos em 2 ou 3 camburões pequenos, desde o quartel do Batalhão de Guardas, no bairro de São Cristóvão, onde estávamos recolhidos aguardando o desenlace das negociações do seqüestro. Éramos: eu (Umberto), Antonio Rogério, Aluízio Palmar, Pedro Alves, Marcão, Ubiratan Vatutin, Irani Costa, Afonso, Afonso Celso Lana, Bretas, Julinho, Mara, Carmela, Dora e Conceição.

Fazia sol a pino e os caras pararam os camburões em algum pátio descampado da Base e deixaram a gente lá torrando dentro daqueles verdadeiros fornos; e de puro sadismo e sacanagem riam e gritavam uns para os outros "...olha aí cara, os rapazes estão com calor, você esqueceu de ligar o ar, eles vão ficar suadinhos...". Um outro dizia "...deixa esses filhos da puta esturricarem aí dentro, pode ser que algum deles vá logo para o inferno...". A viagem ao inferno não era possível, pois já estávamos nele, ou seja, nos cárceres da ditadura, há algum tempo. A temperatura dentro dos carros era altíssima, mal conseguíamos respirar pelas poucas frestas de ventilação, os miolos pareciam que iam estourar. Foi um horror!

Ficamos na Base durante todo o dia 13, onde já estavam muitos outros companheiros vindos de outras prisões e de outros estados, e lá nos mantiveram o tempo todo, algemados em duplas. Deram-nos comida podre, tiraram mais impressões digitais, nos obrigaram a tirar fotos nus em diferentes posições. Alguns deles diziam que era para o futuro reconhecimento dos cadáveres...

Perto da meia noite nos levaram para o embarque, nos agruparam ao lado do avião, frente a um batalhão de fotógrafos postados há uns 50 metros de distância, atrás de uma corda. Éramos 70, mais as filhas do Bruno e da Geny Piola, as menininhas Tatiana, Kátia e Bruna. Os flashes espocavam e muitos de nós levantamos os punhos, outros fizeram o V da vitória, enquanto os caras da aeronáutica, por trás, davam socos nas costas de alguns companheiros. Nosso voo da liberdade para o Chile decolou aos dois minutos de 14 de janeiro. Durante o voo, íamos algemados e os policiais da escolta nos provocavam. "...Olha aí malandro, se voltar vai virar presunto, nome de rua...". A tripulação da Varig, mesmo discreta, foi simpática e afável conosco e quando chegamos a Santiago um comissário de bordo veio correndo me contar que havia uma faixa na sacada do aeroporto que dizia "Marighella Presente".

Foram dois longos dias, cheios de tensão, de expectativa, de esperança, todos os sentidos em atenção. Talvez, alguns dos mais longos dias das nossas vidas. Tenho a certeza de que nenhum de nós jamais se esquecerá daqueles momentos. Nas últimas horas da madrugada do dia 14 chegamos ao Chile. Depois de 38 dias de negociações muito difíceis, de risco extremo, mas com muita firmeza e equilíbrio por parte do Comandante Carlos Lamarca e dos companheiros da VPR que realizaram a operação de captura do embaixador suíço, aquela que seria a última grande ação armada da guerrilha urbana brasileira terminava vitoriosa. Começava um novo tempo nas nossas vidas.

Fomos descendo do avião, já sem algemas (os policiais brasileiros da escolta foram impedidos de desembarcar), nos abraçando emocionados, rindo, chorando, cantando a Internacional, acenando para os companheiros brasileiros e chilenos que faziam uma carinhosa manifestação para nos recepcionar.

Um general dos carabineros nos reuniu no saguão do aeroporto e fez uma preleção sobre tudo que estávamos proibidos de fazer no país. Logo em seguida, funcionários do governo da UP e companheiros dos vários partidos da coalizão nos disseram ali mesmo para não levar a sério nada do discurso do tal general. Era o Chile de Salvador Allende que íamos viver e conhecer tão intensamente.

Amanhecia o dia 14 de janeiro de 1971 quando saímos do aeroporto de Pudahuel em ônibus, escoltados pelos carabineros. Amanhecia também aquele novo tempo das nossas vidas e amanhecia o Chile da Unidade Popular, da imensa liberdade, das grandes mobilizações populares, da luta de classes ao vivo e a cores saltando diante dos nossos olhos todos os dias. Pelas ruas de Santiago, a caminho do Parque Cousiño onde ficaríamos alojados, os operários que trabalhavam nas obras do metrô acenavam para a gente, outros aplaudiam, alguns levantavam os punhos cerrados. Imagens que ficariam para sempre na memória, fotografias de um tempo.

Aquele dia parecia infindo, ninguém conseguia pregar um olho, foi um dia enorme, cheio de encontros, de descobertas, de luz. Estávamos bêbados de liberdade e ao mesmo tempo ainda marcados pela sombra da prisão, pelas tristes notícias de mais companheiros covardemente assassinados pelos cães da ditadura.

Na nossa primeira refeição no Hogar Pedro Aguirre Cerda a maioria deixou os garfos e facas sobre a mesa e comeu de colher, como fazíamos na prisão. Quando íamos para os quartos de alojamento, alguns cometiam o ato falho de dizer "...vou para a cela...". Na nossa primeira saída, um grupo se perdeu na cidade e voltou para o Hogar de carona num camburão dos carabineros, motivo de gozação geral.

Lembro da imensa solidariedade e carinho com que fomos recebidos pelos companheiros chilenos e também por estudantes, intelectuais, artistas, operários, pessoas do povo que iam nos visitar, que fizeram coletas para nos arranjar algum dinheiro e roupas, que nos queriam levar para suas casas.

Nas semanas e meses seguintes, pouco a pouco nos fomos dispersando, construindo nossas opções de militância, de vida.

Viveríamos intensamente aquele processo chileno e também nossos vínculos com a luta no Brasil. Encharcaríamo-nos com o aprendizado daquela magistral aula de história e de política "em carne viva". Paixões, alegrias, nostalgias, saudades, amores, amizade, solidariedade, companheirismo, tudo junto, ao mesmo tempo.

Muitos de nós estivemos no Chile até o fim, vivendo e testemunhando os horrores do golpe de 11 de setembro de 1973. Em muitos casos, mais uma vez, escapando por pouco, por muito pouco.

Outros companheiros, por diferentes razões de militância e pessoais, foram viver em outros países. Alguns trataram de organizar suas voltas clandestinas ao Brasil, na esperança de continuar a luta armada. Uns poucos conseguiram manter-se, mas infelizmente, nessa empreitada de luta, vários companheiros foram assassinados.

Honro as suas memórias e me orgulho de termos compartilhado aqueles momentos tão significativos das nossas vidas. Foi o tempo que nos tocou viver. Era um tempo de guerra, mas também de uma enorme esperança.

Na passagem dos 40 anos da nossa libertação, acho que deveríamos dedicar a memória desse encontro fraterno, em primeiro lugar aos companheiros do nosso grupo chacinados pelas ditaduras brasileira e chilena, como também aqueles que marcados por sequelas e feridas psicológicas insuportáveis não conseguiram continuar suas vidas: Daniel José de Carvalho, Edmur Péricles Camargo, João Batista Rita, Joel José de Carvalho, Wânio José de Matos, Tito de Alencar Lima, , Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Gustavo Buarque Schiller.

Em segundo lugar, com saudade, a todos os companheiros daquela viagem para a liberdade de 14 de janeiro de 1971, que já nos deixaram. Com eterna gratidão e reconhecimento ao Comandante Carlos Lamarca e aos combatentes da VPR que realizaram aquela ação revolucionária audaz e vitoriosa.

E também a todos os brasileiros da nossa geração (e aqui não falo em idade, que pode ter ido dos 12 aos 80) que não se acovardaram, que foram capazes de enfrentar aqueles duros e difíceis tempos, quando dizer não poderia significar a morte, "quando falar em árvores era quase um crime...".

Enfim, a todos os que OUSARAM LUTAR!

Umberto Trigueiros Lima (Mazine) é ex-preso político e jornalista.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

100 anos de Noel Rosa

Brasil de Fato

23/12/2010

Pedro Nathan

O poeta da vila conseguiu expressar no samba do morro o sentimento de toda a cidade

Se estivesse vivo, Noel Rosa teria completado 100 anos, em 11 de dezembro. Além de sua contribuição na divulgação do samba, é necessário enfatizar sua preocupação em produzir uma arte de expressão popular. De sua vida e de sua obra ficam valiosas pistas aos que se aventuram nos caminhos do povo. Neste texto, uma breve apresentação do poeta, com algumas contextualizações.

Prazer em conhecê-lo

Noel de Medeiros Rosa, sambista e compositor, abandonou a faculdade de Medicina por uma vida dedicada ao samba. Nascido em 1910, no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Desde cedo teve contato com os moradores dos cortiços e dos morros, bem como com os ritmos que vinham de lá. Como poucos de sua época, soube retratar seu tempo e os tipos urbanos que ali viviam. Para alguns autores, inclusive, sua obra traz elementos para entendermos o processo e as contradições da formação histórica do Brasil.

Baleiro, jornaleiro, motoneiro,

Condutor e passageiro

Prestamista e vigarista

E um bonde que parece uma carroça

Coisa Nossa, Muito nossa!

(São Coisas Nossas, Noel Rosa)

Noel começou sua carreira musical junto com outros garotos de Vila Isabel, dentre eles também estava o compositor Braguinha, no conjunto Flor do tempo, que depois viria a se chamar ‘Bando dos tangarás’. O grupo começou tocando músicas no estilo da embolada nordestina, que era moda no país. É importante lembrar que naquele tempo, o Brasil ainda era basicamente rural.

Minha viola

Tá chorando com razão

Por causa de uma marvada

Que roubou meu coração

(Minha Viola, Noel Rosa)

Mais tarde, Noel trocaria esses ritmos pelo samba. Segundo o escritor Luiz Ricardo Leitão, ele já estaria antevendo a transformação do Brasil em um país urbano. Frequentou os botequins da Lapa do Rio de Janeiro dos anos 1930 e foi o primeiro a fazer parcerias com os novos compositores do morro, dentre os quais, Agenor de Oliveira, Cartola. Também foi um dos pioneiros a gravar suas canções no rádio, que só começava no Brasil (e que por um bom tempo, seria o principal veículo de comunicação de massa). Devido à sua saúde precária, faleceu em 4 de maio de 1937, vítima de uma tuberculose.

Mesmo que, hoje em dia, nem todas as pessoas conheçam quem foi Noel, se já não ouviram suas músicas, ao menos tomaram contato com alguma manifestação que lhe fizesse referência, mesmo indiretamente. Isso porque sua obra influenciou grande parte da produção cultural brasileira dos séculos 20 e 21. Mas se sua criação tem tanto a dizer para nossa realidade, é porque o contexto em que fora produzida nos legou heranças históricas.

Nuvem que passou

O período de produção musical de Noel Rosa - pelo menos no que se refere às músicas que fez a partir de quando se tornara um músico profissional - vai, mais ou menos, de 1929 a 1937. Nesse curto espaço de tempo ocorrem pelo menos três grandes acontecimentos políticos e econômicos de grande relevância: o ‘crack’, ou a quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, resultado da maior crise de superpordução até então ocorrida no capitalismo; a chamada revolução de 1930, processo que colocou Getúlio Vargas no poder, em benefício da burguesia industrial (até então, na República do ‘café com leite’, quem ditava a regra era a burguesia agrária); O “Estado Novo”, ditadura implantada pelo próprio governo Vargas, alguns meses após a morte de Noel (e dois anos depois, eclodiria a II Guerra mundial). Foi, portanto, um período de turbulência, em que a história até parece caminhar mais depressa.

Assim, se a referência tradicional do samba era a da malandragem individual, como um meio de sobrevivência e ascensão social, para Noel, o ponto de partida era o coletivo: a crise geral e a situação das maiorias.

Vivo contente embora esteja na miséria

Que se dane! Que se dane!

Com essa crise levo a vida na pilhéria

Que se dane! Que se dane!

(Que se Dane. Noel Rosa)

É verdade que não podemos reduzir a obra de Noel pura e simplesmente a um reflexo de sua época. Por outro lado, é certo que todos esses acontecimentos forneceram matéria-prima e condições suficientes para que o poeta se tornasse o artista que, de fato, se tornou

No rádio

Nesse mesmo período, o rádio começa a se desenvolver, seguindo política do governo Vargas de estimular sua difusão em âmbito nacional. Nesse bojo, o próprio samba viria a ser apropriado como uma forma de estabelecer uma identidade nacional. A indústria cultural apenas engatinhava. Mesmo assim, alguns dilemas já se faziam presentes:

Quem dá mais?

por um samba feito nas regras da arte

Sem introdução e sem segunda parte

Só tem estribilho, nasceu no Salgueiro

E exprime dois terços do Rio de Janeiro

(Quem dá mais? Noel Rosa)

O samba, enquanto expressão legítima de resistência de um povo, agora, passava a tocar no rádio. Mas nem todos os sambistas tiveram oportunidade de ouvir suas composições em cadeia nacional. Com o desenvolvimento dessa indústria, a música perderia cada vez mais o seu caráter de trabalho coletivo para, em sua forma de mercadoria, aparecer como mero entretenimento. Mesmo tocando nas rádios, era mais um sambinha que se dissolvia no ar:

Fiz um poema pra lhe dar

Cheio de rimas, que acabei de musicar

Se por capricho, não quiseres aceitar

Tenho que jogar no lixo mais um samba popular

(Mais um samba popular, Noel Rosa/Vadico)

Claro que o nível de padronização ainda não era tão grande, se comparado ao que fazem, hoje, as grande gravadoras. Porém, a canção das rádios e dos discos já era, claramente, tratada como artigo de troca. Havia, inclusive, os que comprassem até as autorias das músicas, como Francisco Alves e, anos depois, Roberto Carlos. A seguinte questão já se anunciava: como expressar o canto popular e agradar aos anunciantes, ao mesmo tempo?

Noel viveu essa situação, como todo artista de seu tempo. Não conseguiu dar uma solução para o problema – só mesmo uma revolução poderia resolver isso, já que se tratava de uma consequência do capitalismo internacional. Mesmo assim, fez claramente a opção pela música que vinha do morro, particularmente do Estácio de Sá.

Nasci no Estácio

É muito difícil entender a obra de Noel sem levar em conta a influência dos sambistas do morro do Estácio. Foi nesse morro que o samba ganhou o ritmo e a cadência modernos. Foi lá também que surgiu a primeira escola de samba (Deixa Falar) e, pelo menos, dois instrumentos que até hoje são utilizados em rodas de samba: o surdo e o tamborim. Realmente, o samba carioca nasceu no Estácio. Antes disso, era o samba praticado na casa de Tia Ciata, trazido da Bahia, derivado da umbigada (o semba,de Angola) e muito parecido com o ritmo do maxixe. Ismael Silva, um dos grandes nomes do Estácio e parceiro de Noel em algumas músicas é quem diz:

O estilo (antigo) não dava para andar. Eu comecei a notar uma coisa. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar assim? Aí a gente começou a fazer um samba assim: bum bum patcumbumprugurudum”

(citado em livro de Sérgio Cabral,1996,p. 242)

Percebendo a força social do samba do Estácio, Noel contribuiu para sua expansão. Pelo bem e pelo mal, o samba já não era só um fenômeno do morro, foi apropriado pelas massas.

O samba, na realidade

Não vem do morro nem lá da cidade

E quem suportar uma paixão

Sentirá que o samba então

Nasce do coração

(Feitio de oração, Noel Rosa/Vadico)

Traga a conta, seu garçom!

Em seu tempo, Noel nos deixou pistas para o desenvolvimento de uma arte popular que pudesse traduzir o sentimento geral da população e seus problemas mais candentes. O exemplo que nos deixou, ao ir de encontro ao povo e se expressar através de sua realidade e de seu ritmo, certamente, nos vale até hoje. Na certa, as respostas encontradas na época de Noel não poderão dar conta dos desafios colocados, hoje, para a organização da classe trabalhadora.

Sem dúvida, ainda é necessário, se não ‘subir o morro’, ao menos, ‘pisar no barro’. Contudo, não basta. A sociedade se transforma, as mediações para esse tipo de trabalho também se tornam mais complexas. Antes de qualquer coisa, sabemos que a saída está em nos organizarmos coletivamente – mas, com que roupa?

Pedro Nathan é cartunista e militante da organização Consulta Popular.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Itália insulta o Brasil no caso Battisti, diz filósofo italiano Toni Negri

Thiago Scarelli
Do UOL Notícias
Em São Paulo (SP)

A Itália adota uma postura "insultante" com o Brasil no conflito em torno do ex-ativista Cesare Battisti, porque não se trata de um país desenvolvido, e mente quando diz que vivia um Estado de Direito nos anos 70. A análise é do filósofo italiano Antonio Negri, que passou mais de dez anos preso por seu envolvimento com a militância de esquerda na Itália.

Negri é co-autor, com Michael Hardt, do livro "Império", publicado no Brasil em 2001 e umas das obras mais importantes e polêmicas sobre o processo de globalização. Com Giuseppe Cocco, publicou "Global - Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada", em 2005.

Leia abaixo a entrevista completa, concedida por Negri via telefone desde Veneza.

Quem é Toni Negri

Antonio Negri, 75, é um filósofo italiano, professor da Universidade de Pádua (Itália) e do Colégio Internacional de Paris (França). Entre os anos 50 e 70, participou dos movimentos de esquerda na Itália, condenando tanto a direita quanto o stalinismo. Esteve preso entre 1979 e 1983, depois se exilou na França por 14 anos. Condenado por subversão, o filósofo voltou para a Itália em 1997 e cumpriu pena até 2003. Atualmente, divide seu tempo entre Veneza e Paris, cidades onde desenvolve atividades acadêmicas

UOL - Como o senhor vê a posição da Itália no caso Battisti?

Antonio Negri - A posição italiana é uma posição muito complexa. Como se sabe, o governo italiano é um governo de direita e é um governo que, depois de 30 anos, retomou a perseguição das pessoas que se refugiaram no exterior depois do final dos anos 70, depois do final dos anos nos quais na Itália houve um forte movimento de transformação, de rebelião. E, portanto, o governo italiano retoma hoje uma campanha pela recuperação destas pessoas. Em particular, tentou fazê-lo com a França, para conseguir a extradição de Marina Petrella [condenada por subversão pela justiça italiana] e não conseguiu porque o governo francês, a presidência francesa [Nicolas Sarkozy], impediu. Neste ponto, aparece em um momento exemplar o caso Battisti.

UOL - O que o senhor quer dizer com perseguição? É perigoso neste momento para Battisti retornar à Itália?

Negri - Eu não sei se é perigoso. Mas é certo que ele foi condenado à prisão perpétua e seria para ele uma situação muito grave.

UOL - Um dos motivos que o Brasil cita para manter o refúgio político é a ameaça de perseguição política contra Battisti...

Negri - Mas seguramente ele seria alvo de uma perseguição política e midiática.

UOL - Trata-se, portanto, de um temor com fundamento?

Negri - Veja bem, o governo italiano, depois de 30 anos, quer recuperar, para fazer um exemplo, as pessoas que se refugiaram no exterior. E que se refugiaram no exterior porque na Itália havia uma condição de Justiça que era impossível de aguentar.
UOL - O que significa esse "exemplo"? A punição de Battisti resolveria a questão da violência na Itália nos anos 70?

Negri - Precisamente. Resolveria em dois sentidos: por um lado, se recupera aquilo que eles chamam 'um assassino'; e por outro se esquece aquele que foi um Estado de Exceção, que permitiu a detenção e a prisão preventiva de milhares de pessoas durante estes anos. É necessário recordar que nos anos 70 o limite jurídico da prisão preventiva era fixado em 12 anos. É necessário recordar o uso da tortura e de processos sumários inteiramente construídos sob a palavra de presos aos quais era prometida a liberdade em troca de confissões. Este foi o clima dos anos 70. E não nos esqueçamos que nos anos 70 houve 36 mil detenções, seis mil pessoas foram condenadas e milhares se refugiaram no exterior. E se há quem duvide desses números, e que quer continuar duvidando, basta que deem uma olhada nos relatórios da Anistia Internacional naqueles anos. Portanto, essa é uma questão muito séria. O caso Battisti é, na verdade, um pobre exemplo de uma estrutura, de um sistema no qual a perseguição, insisto na palavra 'perseguição', era acompanhada por enormes escândalos na estrutura política e militar italiana. Houve uma construção, principalmente por meio de uma loja maçônica chamada P2, de uma série de atentados dos quais ainda hoje ninguém sabe quem foram os autores, atentados que deixaram milhares de mortos, por parte da direita. E o governo italiano nunca pediu, por exemplo, que o único condenado por estes atentados seja extraditado do Japão, onde se refugiou. Existe uma desigualdade nas relações que o governo italiano mantém com todos os outros condenados e refugiados de direitas que é maluca. O governo italiano é um governo quase fascista.

UOL - Se houvesse um governo de esquerda na Itália o caso seria o mesmo? [O líder da oposição de centro-esquerda] Romano Prodi faria o mesmo?

Negri - Eu não acredito que Prodi faria o mesmo, mas parte da esquerda faria o mesmo, isso é verdade.

UOL - Como o senhor vê hoje o PAC [Proletários Armados pelo Comunismo, grupo do qual Battisti fazia parte]?

Negri - O PAC era um grupo muito marginal, mas isso não significa que não estivesse dentro do grande movimento pela autonomia. Mas ouça, o problema é esse: eu acho que as coisas das quais foi acusado Battisti são coisas muito graves, mas - e isso me parece importante dizer - estas são responsabilidades compartilhadas por toda a esquerda verdadeira. Não se trata de um caso específico. O Supremo Tribunal Federal do Brasil construiu uma jurisprudência pela qual foram acolhidos outros italianos nas mesmas condições que Battisti.

UOL - E como a Itália deve solucionar esta dívida com o passado?

Negri - Isso deveria ser feito por uma anistia, mas o governo italiano nunca quis caminhar por este terreno. Talvez tudo isso tenha determinado tremendas conseqüências no sistema político italiano, porque foi retirada da história da Itália uma geração ou duas, que poderiam ter conseguido determinar uma retomada política. É uma situação muito dramática. E gostaria de acrescentar uma coisa: o a postura da Itália no confronto com o Brasil a respeito deste tema é uma postura muito insultante. Trata-se de uma pressão feita sobre o Brasil, enquanto um país fraco, depois que os franceses não extraditaram à Itália Marina Petrella. Psicologicamente, trata-se de uma operação política e midiática muito pesada contra o Brasil, na tentativa de restituir a dignidade da Itália, no âmbito da busca de restituir os exilados.

UOL - O senhor acha que as autoridades italianas se sentem especialmente ofendidas pelo fato de a decisão em favor de Battisti vir de um país em desenvolvimento, antiga colônia de um país europeu?

Negri - Seguramente, porque se trata de pobres que reagem contra os ricos, contra os capitalistas.

UOL - O senhor também esteve preso?

Negri - Eu fui detido em 1979 e fiquei na cadeia até 1983, em prisão preventiva, sem processo. Em 1983, houve um eleição parlamentar e eu saí da cadeia porque fui eleito deputado, porque não era ainda condenado. Fiquei preso quatro anos e meio - e poderia ter ficado até 12. Ou seja, quando os italianos dizem que nos anos 70 foi mantido o Estado de Direito, eles mentem. E isso eu digo com absoluta precisão, com base no meu próprio exemplo: fiquei quatro anos e meio em uma prisão de alta segurança, prisão especial, fui massacrado e torturado. Pude deixar a prisão apenas porque fui eleito deputado - do contrário, eu poderia ter ficado na prisão por 12 anos, sem processo. Durante os anos que fiquei na França, exilado, eu fui processado e condenado a 17 anos de prisão, mas que foram reduzidos porque havia uma pressão pública forte em meu fa vor. Quando voltei para a Itália, fiquei outros seis anos presos e encerrei a questão.

UOL - Quais eram as acusações?

Negri - Associação criminosa, gerenciamento de manifestações que eram violentas nos anos 70, em Milão, em Roma, em toda Itália. Mas a primeira acusação que sofri não era de agitador político, por escrever jornais etc., mas de chefiar as Brigadas Vermelhas, o que não é verdadeiro, e de ter assassinado [Aldo] Moro, acusações das quais fui absolvido depois. Entende? Na Itália se busca desesperadamente fazer valer uma mitologia dos anos 70, que é falsa. E a direita no poder hoje busca a qualquer custo restaurar um clima de falsidade e de intimidação para não permitir que a história seja contada como foi.

UOL - Existem aí semelhanças com o governo militar no Brasil?

Negri - Isso eu não sei, porque acho que os governos militares na América Latina foram particularmente violentos. Mas o problema é outro: a questão é que a liberdade, o Estado de Direito e as regras da democracia não podem ser infringidos ou falsificados em nenhuma situação.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Morador sem-teto quer direito à cidade, não apenas moradia

Para pesquisadora, movimentos atuais de moradia querem ter acesso a serviços básicos e equipamentos culturais urbanos disponíveis no centro da cidade


22/12/2010


Marcelo Pellegrini
Agência USP de Notícias

Os conflitos recentes entre os movimentos sociais por moradia no centro de Sao Paulo e a administração municipal apontam para mudança nas exigências destes movimentos, segundo indica a arquiteta Diana Helene Ramos. Ela é responsável por um estudo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, orientado pelo professor Csaba Deak, que analisa as ocupações de edifícios abandonados no centro paulistano. O estudo é uma dissertação de mestrado realizada em 2009.

“Os movimentos de moradia estão evoluindo e não exigem mais apenas moradia, como nos anos 1980. Hoje em dia, eles não aceitam serem isolados na periferia. Querem ter acesso aos serviços básicos de saúde, transporte e educação e aos equipamentos culturais urbanos disponíveis no centro da cidade”, afirma a arquiteta que fez parte do grupo Risco, entidade que presta apoio para os movimentos de luta por moradia na região central da cidade.

Para Diana, o centro de São Paulo passa por um momento de transição. “Em um primeiro momento, a área passou por um esvaziamento e depois começou a ser ocupada pelas classes populares que procuravam acesso aos equipamentos urbanos”, relata.

O centro da capital paulista foi ocupado pelas classes populares tanto no âmbito comercial, com os camelôs, quanto na luta por moradias. No entanto, com o início das políticas de revalorização econômica da região, há cerca de dez anos, começaram as expulsões e reintegrações de posse dos imóveis.

Estas reapropriações de edifícios têm gerado grande insatisfação e protestos dos movimentos sociais. Os últimos protestos, ocorridos em novembro de 2010, ocorreram devido à reintegração de posse do edifício número 895 da Avenida Ipiranga, que culminou com vinte dias de acampamento em frente à Câmara Municipal de São Paulo.

Para a pesquisadora, essas manifestações explicitam “as falhas no modelo econômico adotado para o desenvolvimento da cidade”. De acordo com dados do Ministério das Cidades, de 2006, o déficit habitacional da região metropolitana de São Paulo é de aproximadamente 724 mil pessoas, enquanto estatísticas, de 2008, da Fundação Getúlio Vargas apontam para um déficit habitacional na capital que pode chegar a 1,5 milhão de pessoas. Recentemente, o Censo 2010 do IBGE demostrou que o número de domicílios vagos no País é maior que o déficit habitacional brasileiro. São Paulo é o estado com o maior número de domicílios vagos: o número de moradias vazias na cidade chega a 1,112 milhão.

Realocação dos moradores

Após a reintegração de posse, a prefeitura de São Paulo tem fornecido alternativas aos ocupantes que não satisfazem suas necessidades: um caminhão para o transporte dos móveis das famílias retiradas e o reencaminhamento delas para albergues ou residências de algum conhecido dos moradores expulsos na reintegração.

No entanto, poucos moradores sem-teto possuem outro lugar para ir além dos albergues mantidos pela prefeitura. “Os albergues não são ideais para realocarem famílias com crianças ou mulheres solteiras, mesmo que temporariamente. Nestes locais, mulheres e crianças têm que conviver com dependentes químicos, o que normalmente causa transtornos para ambas as partes. Além disso o albergue não representa uma solução para o problema de falta de moradia”, critica a pesquisadora.

Para Diana, a ocupação de prédios vazios e inutilizados no centro de São Paulo, por si só, já representa uma solução para o déficit habitacional da cidade. “Para resolver o problema habitacional é necessário investir em políticas públicas que devem ser construídas com o diálogo entre os movimentos de moradores sem-teto e a administração pública. É necessário pensar em conjunto e respeitar as necessidades de ambas as partes para resolver o problema”, conclui.


Palavras-chaves: moradia, movimentos sociais, moradores sem-teto

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Mina de urânio pode transformar Caetité em cidade fantasma

Da Rádio Agência NP

Nos primeiros dias do governo Dilma, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, anunciou que pretende aprovar ainda neste ano o projeto para a construção de quatro novas usinas nucleares. Atualmente, o país possui duas usinas, ambas localizadas em Angra dos Reis (RJ).

Essa retomada do programa nuclear vai aumentar a demanda por urânio. No município de Caetité (BA) está localizada a única mina em operação no Brasil. No final de 2010 a Plataforma Dhesca denunciou que a população do município convive com níveis de radiação 100 vezes maiores que a média mundial. A INB (Indústrias Nucleares Brasileiras) negou a contaminação, baseada num estudo encomendado da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

Em entrevista à Radioagência NP, a integrante da Plataforma Dhesca, Cecília Mello, revela as violações de direitos identificadas durante a visita que fez a Caetité. Ela relata o caso de Poços de Caldas, em Minas Gerais, que passou de pólo turístico a cidade fantasma depois da exploração do urânio. Por fim, demonstra preocupação com a futura mina, em Santa Quitéria (CE), que já apresenta irregularidades no licenciamento ambiental.

Leia abaixo a entrevista concedida à Rádio Agência NP.

Radioagência NP: Cecília, o que você constatou na visita a Caetité?

Cecília Mello: O quadro é de temor, angústia, incerteza por parte da população. O relato dos moradores é que está havendo uma incidência de câncer desproporcional. Conversamos com um médico de um hospital da região que se mostrou preocupado com a quantidade de diagnósticos que ele tem feito de neoplasias, de cânceres em pessoas entre 30 e 40 anos.

RNP: Como você analisa o estudo de um pesquisador da Fiocruz que nega qualquer relação entre a exploração de urânio e os casos de câncer?

CM: Como você vai tirar qualquer conclusão, se tem uma base de dados com 1/3 dos óbitos, no mínimo, que você não sabe qual é a causa. O quadro de desinformação é grave. O fato de as pessoas saírem do município para buscar tratamento em Vitória da Conquista, em Salvador ou em São Paulo faz com que a gente não consiga rastrear o que está acontecendo com a saúde da população. Se você tem algum problema e vai para São Paulo, você diz que é morador local para ter atendimento. É preciso ser feito um estudo epidemiológico consistente para acompanhar os riscos que a população está submetida.

RNP: Que medidas devem ser adotadas para amenizar os impactos sofridos pelos moradores que vivem no entorno da mina?

CM: Essa população tem que ser indenizada porque eles sofrem os impactos não só na saúde. A gente viu casas completamente rachadas. Caetité faz parte do semiárido, mas como todos sabem, o semiárido brasileiro é um dos mais chuvosos do mundo. Eles têm técnicas de construir cisternas e guardar essa água. Ali se produzia arroz, que é uma cultura que demanda muita água. Hoje, a produção está muito reduzida, estigmatizada, ninguém quer comprar mandioca, gado, leite e queijo da região.

RNP: Atualmente, que tratamento é dado ao lixo nuclear no Brasil?

CM: Essas minas duram de dez a 20 anos. Em Caetité a previsão é de 16 anos. Ou seja, depois que a exploração termina a população fica com o passivo. E Poços de Caldas [MG] tem um agravante porque depois do esgotamento do urânio a região se tornou uma espécie de “bota-fora” do nuclear brasileiro. O lixo radioativo é um problema não resolvido pela indústria nuclear. Não existem depósitos permanentes no Brasil, todos são temporários, mas acabam se mantendo ad infinitum.

RNP: Que impactos a extração de urânio provocou em Poços de Caldas?

CM: O caso de Poços de Caldas, que era uma região turística conhecidíssima, muito valorizada no Sudeste, um lugar onde os noivos iam passar a lua-de-mel hoje em dia está totalmente abandonada. Eu tive a oportunidade de passar por lá e parece uma cidade fantasma. Hoje o que se vê é um legado, um impacto sobre a saúde da população grave a ponto de duas vereadoras da região denunciarem a incidência de câncer desproporcional em relação ao resto do estado de Minas Gerais.

RNP: Caetité pode ter o mesmo destino?

CM: Teme-se que Caetité se torne uma nova Poços de Caldas. Por isso a nossa atenção especial a esse caso. Não é possível que o Brasil, que tem uma legislação ambiental supostamente avançada, continue investindo ou estimulando atividades que expõem o meio ambiente e a saúde da população a riscos que já deveriam ter sido superados.

RNP: As construções das novas usinas nucleares anunciada pelo governo federal podem agravar o problema?

CM: Com a retomada do programa nuclear brasileiro se configurou a intensificação das atividades de mineração, não só lá em Caetité, mas em Santa Quitéria (CE), que promete ser a próxima mina de urânio. Estamos muito preocupados e atentos ao licenciamento dessa mina de urânio, que foi feito pelo órgão estadual de maio ambiente, o que é ilegal porque todas as atividades que têm a ver com o ciclo nuclear devem passar obrigatoriamente pela esfera federal, pelo Ibama.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Chuvas torrenciais: catastrofe social, desigual e combinada

Neste período de chuvas torrenciais, de ano em ano, ficamos todos boquiabertos, assustados, apavorados, arrebentados e destruídos com os tristes resultados causados pelas catástrofes: enchentes, desmoronamentos, mortes, desabrigados, perdas materiais.... As imagens tão divulgadas pelos meios de comunicação ou vivenciadas no dia-a-dia são lamentáveis.

Num esforço de entender porque se repete anualmente esta lamentável situação, parei para pensar como melhor qualificar a palavra catástrofe, utilizada acima no texto. Afirmo que de forma alguma, este texto se propõe a tratar do assunto com tom irônico ou de forma distante da dureza sofrida por aqueles que vivem na pele esta realidade, mas comprometido por uma reflexão que busque respostas, caminhos e sugestões para a mudança de tais calamidades.

Assim, não acredito que o melhor adjetivo a ser usado ao lado da palavra "catástrofe" seja o "natural", ou seja, que a potencialidade destrutiva dos fenômenos climáticos ocorridos são superiores à capacidade de reação e previsão pelos administradores públicos, tornando os impossibilitados de evitar tamanhas tragédias. Também não acredito que somente "Deus" seria capaz de prever tais catástrofes ou que estas não são mais do que castigo divino a desordem humana.

Também, não pretendo adentrar nas questões polêmicas que afirmam que tais mudanças climáticas são ou não provocadas pela ação humana, não pela discordância ou pelo desprezo ao tema, mas sim pela falta de capacidade técnica para aprofundar a questão como também pela opção por outro caminho.

Mas caminhando em sentido paralelo a este último negado, eu penso que estas catástrofes têm forte origem social. Fruto da catástrofe do planejamento urbano, da vulnerabilidade social que vivem as pessoas que geralmente são expostas aos desastres ambientais provocados pelo clima e, portanto, ampliadas pelas condições sociais e estruturais de nossa sociedade

Um exemplo inicial do resultado da falta de política de planejamento urbano é o abandono de políticas básicas de conservação dos equipamentos públicos e ou a construção de novos equipamentos mais eficazes para diminuir o impacto por exemplo das enchentes: como a limpeza de córregos, de piscinões, de galerias, política efetiva de coleta de lixo e educação ambiental para diminuir o descarte de resíduos em vias públicas etc.

Pensando sobre as áreas de moradia que sofrem com desmoronamentos e enchentes, as pessoas que moram em torno das áreas de riscos ambientais como encostas, morros, perto de erosões, sobre antigos depósitos de entulhos e lixos, na margem de rios e riachos, sobre terrenos desgastados pelo desmatamento ou pelo mal-uso do solo, são pessoas que vivem também em insegurança a outros diversos direitos sociais como alimentação, emprego, segurança pública, saneamento e saúde publica, entre outros.

Também, muitas vezes, vivem em moradias precárias, construídas com o esforço de uma vida, mas com as limitações econômicas, seja pelo uso improvisado ou pela compra de materiais de construção de baixa qualidade, não adaptados e preparados para responder a carga destrutiva das intempéries naturais.

A desigualdade social e geográfica na distribuição da riqueza em nosso país, leva a uma ocupação desordenada do território. Atraídos pelo emprego ou políticas públicas como educação e saúde ou colocados a margem devido às condições impostas pelo desemprego, morte de chefes de famílias, uso de narcóticos etc., muitos brasileiros se deslocam e se abrigam no entorno dos grandes centros, em situações de extrema vulnerabilidade. Aqui o substantivo ganha mais um duro adjetivo: desigualdade.

Finalmente, tem que ser afirmado que o capital: que constrói na mente das pessoas necessidades e prioridades por um consumo desenfreado por mercadorias descartáveis e globalizadas e esconde na neblina da alienação sentimentos e valores como solidariedade e mobilização social; que na sua anarquia liberal diferencia as pessoas pelo poder econômico, por exemplo, permitindo qualidade de materiais de construção para uns e para outros o risco ambiental; também, é o capital que se retroalimenta com as re-construções das comunidades e bairros destruídos pela natureza e pela falta de planejamento. Ou seja, aqueles que vivem em luxuosos palacetes ou em paraísos naturais acabam lucrando mais e mais com tudo isto. Assim a Catástrofe é social, desigual e combinada.

Neste sentido, tais catástrofes somente serão evitadas em uma sociedade livre da desigualdade social e pautada por um replanejamento do território, onde seja garantida as fundamentais e necessárias condições dignas de moradia a todos. Da mesma forma, também, é necessário a reorientação do trabalho humano, que de forma auto-organizado, possa atender as necessidades básicas, existenciais e práticas de todos como a construção de boas casas, com bom materiais, em áreas agradáveis de se viver, com estrutura sanitárias e de saúde, boas escolas, etc.

O ser humano sabe o que precisa ser feito. Mas antes sera preciso que homens e mulheres agarrem o seu futuro com as suas próprias mãos, fortaleçam as lutas sociais , elevem a rebeldia contra as absurdas injustiças e promovam a organização popular. Caminho árduo e continuo para construir uma sociedade realmente transformada. Enfim, mesmo que árduo, acredito que tamanho sofrimento e silêncio têm prazo de validade.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A estrangeirização da propriedade fundiária no Brasil


Por Sérgio Sauer e Sérgio Pereira Leite*

Da Agência Carta Maior

Estamos assistindo nos últimos tempos a um crescimento do interesse e busca por terras em todo o mundo, especialmente em razão da demanda por alimentos, agroenergias e matérias primas. Segundo recente estudo do Banco Mundial, de 2010, a demanda mundial por terras tem sido enorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “disputa territorial” um fenômeno global. A transferência de terras agricultáveis (ou terras cultivadas) era da ordem de quatro milhões de hectares por ano antes de 2008. Só entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes na África e outros 3,6 milhões de hectares no Brasil e Argentina, impulsionando aquilo que se convencionou chamar, na expressão em inglês, de “land grabbing”.

Uma constatação fundamental do estudo do Banco Mundial é que o crescimento da produção agrícola e, conseqüentemente, das demandas e transações de compra de terras, se concentra na expansão de apenas oito commodities : milho, soja, cana-de-açúcar, dendê (óleo), arroz, canola, girassol e floresta plantada. A participação brasileira se dá fundamentalmente nos três primeiros produtos. Melhores preços dos agrocombustíveis e os subsídios governamentais levaram à expansão desses cultivos. Em 2008, a estimativa era de 36 milhões de hectares a área total cultivada com matérias-primas para os agrocombustíveis no mundo, área duas vezes maior que em 2004. Deste total, 8,3 milhões de hectares estão na União Européia (com cultivo de canola), 7,5 milhões nos Estados Unidos (com milho) e 6,4 milhões de hectares na América Latina (basicamente com cultivos de cana no Brasil).

Ainda segundo o mesmo documento, em torno de 23% do crescimento da produção agrícola mundial se deu em função da expansão das “fronteiras agrícolas”, apesar de que o aumento mais expressivo (cerca de 70%) da produção é resultado do incremento da produtividade física. As razões dessa expansão da produção (e também do volume das transações de terras) foram: a) demanda por alimentos, ração, celulose e outros insumos industriais, em conseqüência do aumento populacional e da renda; b) demanda por matérias-primas para os agrocombustíveis (reflexo das políticas e procura dos principais países consumidores), e c) deslocamento da produção de commodities para regiões com terra abundante, mais barata e com boas possibilidades de crescimento da produtividade.

Um dos dados mais significativos neste estudo do Banco Mundial é a caracterização dos atuais demandantes de terras no mundo: a) governos preocupados com o consumo interno e sua incapacidade de produzir alimentos suficientes para a população, especialmente a partir da crise alimentar de 2008; b) empresas financeiras que, na conjuntura atual, encontram vantagens comparativas na aquisição de terras e, c) empresas do setor agroindustrial que, devido ao alto nível de concentração do comércio e processamento, procuram expandir seus negócios.

Após a crise dos preços dos alimentos, em 2008, e das previsões de demanda futura, não é surpreendente o crescente interesse de governos – puxados pela China e por vários países árabes – pela aquisição de terras para a produção de alimentos para satisfazer o consumo doméstico. Chamam a atenção, no entanto, os investimentos do setor financeiro, historicamente avesso à imobilização de capital, especialmente na compra de terra, um mercado caracterizado pela baixa liquidez.

Na mesma perspectiva do levantamento do Banco Mundial, estudos encomendados pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do governo brasileiro, mostram que houve um crescimento significativo de investimentos estrangeiros diretos (IEDs) totais no Brasil a partir de 2002 (107% entre 2002 e 2008, passando de 4,33 a 8,98 bilhões de dólares no mesmo período). Segundo o jornal O Globo, o IPEA mostrou que os IEDs no setor primário brasileiro passaram de US$ 2,4 bi, em 2000, para US$ 13,1 bi, em 2007, sendo que a alta de 445% foi puxada pela mineração, que respondeu por 71% do total recebido nesse último ano. Também houve crescimento da participação externa nas atividades agropecuárias como, por exemplo, no cultivo da cana-de-açúcar e da soja e na produção de álcool e agrocombustíveis, especialmente por meio da compra e fusões de empresas brasileiras já existentes.

Apesar de não existir um levantamento mais sistemático, é possível concluir que esses investimentos estrangeiros no setor primário brasileiro resultam também na aquisição de muitas terras. De acordo com levantamento realizado pelos estudos do NEAD, no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), existiam 34.632 registros de imóveis em mãos de estrangeiros em 2008, que abarcavam uma área total de 4.037.667 hectares, números bastante expressivos considerando-se que não abrangeu o “período da corrida por terras” após crise de 2008. Deve-se ressaltar que mais de 83% desse total são imóveis classificados como grandes propriedades (acima de 15 módulos fiscais).

Utilizando diferentes fontes de informações, inclusive pesquisas no SNCR, mas também empresas de consultoria no ramo, os jornais de circulação nacional vêm publicando, desde meados dos anos 2000, dados sobre este processo de aquisição de terras por estrangeiros no Brasil. Em matéria do dia 02/11/2010, a partir de análises do Cadastro do INCRA, a Folha voltou a divulgar o avanço sobre as terras pelo capital estrangeiro. Segundo a reportagem, “empresas e pessoas de outros países compram o equivalente a 22 campos de futebol em terras no Brasil a cada uma hora. Em dois anos e meio, os estrangeiros adquiriram 1.152 imóveis, num total de 515,1 mil hectares”.

Este interesse global por terras (relativamente abundantes) da América Latina (especial destaque ao Brasil, Argentina e Uruguai) e da África subsaariana tem provocado uma elevação dos seus preços. Constatado pelo citado estudo do Banco Mundial, o aumento de preço das terras brasileiras também vem sendo regularmente anunciado pela grande imprensa. No entanto, não há estudos sistemáticos capazes de oferecer um panorama nacional – ou mesmo regional – das transações e preços, sendo que as notícias são ilustradas com levantamentos de casos exemplares e dados locais, municipais ou regionais.

Segundo o jornal O Valor, os projetos sucroalcooleiros implantados entre 2008 e 2010 provocaram a valorização das terras nas regiões de expansão dos cultivos de cana-de-açúcar, especialmente nas novas “fronteiras”, localizadas principalmente nos Estados de Tocantins, Goiás, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, com índices que chegam até a 33% de majoração nos preços. Dados sobre o comportamento do mercado de terras, calculados pelo Instituto FNP para várias regiões brasileiras, corroboram as informações da imprensa sobre aumentos nos preços dos imóveis rurais em áreas de expansão das monoculturas (soja e cana, sobretudo).

Por outro lado, é fundamental ter presente que parte significativa dos investimentos estrangeiros é financiada com recursos públicos, especialmente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Fundo Constitucional do Centro Oeste (FCO). Estes empréstimos e incentivos fiscais estão sendo alocados principalmente em regiões de expansão do cultivo de cana e produção de etanol (Centro-Oeste) e soja (Centro-Oeste, Amazônia, Bahia e Tocantins).

O crescente volume de aplicações estrangeiras em terras brasileiras tem sido objeto de manifestações contrárias, inclusive, de segmentos representativos do chamado “agronegócio” brasileiro, bem como de editoriais da grande imprensa. É interessante notar que mesmo nesses setores que advogam uma perspectiva “pró-mercado”, há claramente uma posição de alerta com a quantidade de terras sendo adquiridas por estrangeiros, distanciando-se portanto das recomendações do estudo do Banco Mundial, mais voltado a explorar as janelas de oportunidades dessas novas áreas por meio do que vem sendo denominado de “investimentos responsáveis”.

Em uma perspectiva distinta, o Executivo Federal, a partir da preocupação com uma possível perda de soberania territorial, solicitou que a Advocacia Geral da União (AGU) fizesse uma revisão do Parecer GQ nº 181, publicado em 1998, que desmobilizou qualquer forma de controle efetivo sobre a aquisição de terras por parte de empresas estrangeiras no Brasil. De acordo com os termos do documento da AGU, desde os pareceres anteriores, de 1994 e 1998, “...o Estado brasileiro perdera as condições objetivas de proceder a controle efetivo sobre a aquisição e o arrendamento de terras realizadas por empresas brasileiras cujo controle acionário e controle de gestão estivessem nas mãos de estrangeiros não-residentes no território nacional”.

Diante da conjuntura atual de uma crescente demanda por terras e da constatação de que o INCRA não possui mecanismos concretos para efetuar um controle adequado das compras de imóveis rurais, o grupo de trabalho formado para avaliar tal situação concluiu que era necessária a “revisão dos pareceres de modo a dotar o Estado brasileiro de melhores condições de fiscalização sobre a compra de terras realizada por empresas brasileiras controladas por estrangeiros”.

A AGU publicou então o Parecer nº LA-01, de 19 de agosto de 2010, o qual re-estabeleceu possibilidades para limitar, ou melhor, para regulamentar os processos de estrangeirização das terras no Brasil. Este documento legal retoma a Lei nº 5.709, de 1971, afirmando que a mesma deve ser acolhida pela Constituição de 1988. Esta lei foi criada para regulamentar a compra de terras por estrangeiros, estabelecendo o limite máximo de compra em 50 módulos (art. 3º), sendo que a soma das propriedades de uma pessoa estrangeira não pode ultrapassar a um quarto (¼) da área do município (art. 12).

Sem desmerecer a importância jurídico-legal de tal parecer, cujo anúncio causou boa impressão em determinados circuitos internacionais ao mostrar a possibilidade de ação efetiva do Estado em área tão estratégica, a solução do problema não se materializa com a referida publicação. Primeiro, há problemas no próprio conteúdo da Lei 5.709 como, por exemplo, o limite de 50 módulos ou a restrição a um quarto da área do município, pois há municípios imensos no Brasil, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, principais alvos da busca por terras e expansão do agronegócio. No entanto, tal iniciativa, abre um caminho para que essa discussão ganhe maior espaço e amplitude no país.

A problemática fundiária transcende em muito ao problema do “land grabbing”, que pode envolver desde a “grilagem ou arresto de terras” até transações comerciais propriamente ditas, uma reação aos efeitos negativos da corrida por terra e a conseqüente estrangeirização. É fundamental não esquecer os históricos níveis de concentração da propriedade da terra no Brasil, novamente corroborados pelo Censo Agropecuário de 2006. Essa concentração fundiária não será revertida somente com adoção de mecanismos de controle da aquisição de terras por estrangeiros, pois a esmagadora maioria das grandes propriedades está nas mãos de poucos brasileiros, o que torna cada vez mais urgente a adoção de políticas redistributivas e de ordenamento territorial, como, por exemplo, a reforma agrária e o reconhecimento das terras pertencentes à populações indígenas e tradicionais.

Sérgio Sauer é professor da Universidade de Brasília (UnB), na Faculdade de Planaltina (FUP) e na pós-gradução do Propaga e Relator Nacional do Direito Humano a Terra, Território e Alimentação - Plataforma DhESCA Brasil.

Sérgio Pereira Leite é professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e Coordenador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA