domingo, 11 de setembro de 2011

em memória ao 11 de Setembro chileno

Mesmo passado 38 anos depois, é sempre importante lembrar como a elite chilena em parceira com os EUA derrubaram o governo popular de Salvador Allende, para construir uma das mais violentas ditaduras militares do mundo!

Hino da campanha de Salvador Allende, Venceremos:













Último discurso de Allende e imagens do ataque ao Palácio La Moneda.













Curta produzido em memória aos dois 11 de setembros, pelo diretor Ken Loach















Sobre as fabricas autogestionárias no Governo de Allende

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Silvio Tendler lança documentário sobre agrotóxicos em Brasília


O Comitê do Distrito Federal da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida lança na próxima segunda-feira (22/8), em Brasília, o novo documentário do cineasta Silvio Tendler, O veneno está na mesa.

O filme trata dos riscos do emprego de agrotóxicos na agricultura e como este modelo beneficia as grandes transnacionais do veneno em detrimento da saúde da população (veja sinopse abaixo).

"O mundo está sendo completamente intoxicado por uma indústria absolutamente desnecessária e gananciosa, cujo único objetivo realmente é ganhar dinheiro. Não tem nenhum sentido para a humanidade que justifique isso que está se fazendo com os seres humanos e a própria terra. A partir daí resolvi trabalhar essa questão. É um filme que vai ter desdobramentos, porque eu agora quero trabalhar essas questões", afirma Tendler.

Depois da exibição gratuita do filme (com duração de 50 minutos), haverá debate com a participação do cineasta.


Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos

O Comitê do Distrito Federal da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos foi lançado em abril deste ano, por um conjunto de mais de 30 organizações que envolvem movimentos sociais (do campo e da cidade), sindicatos, pastorais, organizações ambientalistas e ligadas a área da saúde, entre outras.

Organizada nacionalmente, a Campanha tem como objetivo denunciar e alertar a sociedade para aos prejuízos causados pelo uso de agrotóxicos e aos mesmo tempo construir iniciativas que possam inclusive do ponto de vista jurídico, construir barreiras ao seu uso.

A Campanha também pretende anunciar para a sociedade as diversas iniciativas já existentes no campo da produção de alimentos saudáveis, proporcionando condições para que a sociedade possa se colocar contra o atual modelo agrícola, que por sua vez não se preocupa com a saúde das pessoas e muito menos com o meio ambiente.

Sinopse

O Brasil é o país que mais consome agrotóxicos no mundo: 5,2 litros/ano por habitante. Muitos desses herbicidas, fungicidas e pesticidas que consumimos estão proibidos em quase todo mundo pelo risco que representam à saúde pública. O perigo é tanto para os trabalhadores, que manipulam os venenos, quanto para os cidadãos, que consomem os produtos agrícolas. Só quem lucra são as transnacionais que fabricam os agrotóxicos. A ideia do filme é mostrar à população como estamos nos alimentando mal e perigosamente, por conta de um modelo agrário perverso, baseado no agronegócio.
Serviço:

Data: Dia 22/8, às 19h

Local: Museu da República - ao lado da Rodoviária do Plano Piloto, em Brasília

Entrada franca

No Youtube:




Crise financeira mostra regime em beco sem saída, diz Chesnais


Folha de São Paulo

A crise financeira não tem final à vista. O modelo de crescimento baseado em endividamento, seguido nos países ricos, está num beco sem saída. E o calcado em exportações de insumos - como o do Brasil - pode não funcionar por muito tempo.

A análise é do economista marxista francês François Chesnais, 77, professor emérito da Universidade de Paris 13 e autor de "A Mundialização do Capital" (1996) e organizador de "A Finança Mundializada" (2005).

Para ele, os protestos em Londres, no Chile e no Orienta Médio são expressão "de uma doença mundial criada pelo ca
minho tomado pelo neoliberalismo e pela dominação das finanças". Numa época de valorização do consumismo, são "reações ao extraordinário abismo social", afirma.

A entrevista é de Eleonora de Lucena e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 15-08-2011.

Eis a entrevista.

Qual a natureza da crise atual?

O momento atual é um novo episódio na crise mundial. Ela começou há cinco anos, teve seu ponto mais crítico em setembro de 2008, com a quebra do Lehmann Brothers, e não tem um final à vista. Foi prenunciada pela crise asiática (1997-1998) e, no campo das finanças, pela quase quebra do Long Term Capital Management, no início da crise financeira russa. Eventos-chave nos anos 2000 e 2001 lançaram as bases para a eclosão da crise: o crash da Nasdaq, a resposta norte-americana ao 11 de Setembro, as guerras no Iraque e no Afeganistão, muito custosas política e financeiramente, e a entrada da China na Organização Mundial do Comércio.

Quais são as causa
s?

O funcionamento da economia mundial desde o início dos anos 2000 se baseou em dois pilares: o regime de crescimento guiado pela dívida, adotado pelos EUA e pela Europa, e o regime de crescimento orientado por exportações globais, no qual a China é a principal base industrial, e o Brasil, a Argentina e a Indonésia são os provedores-chave de recursos naturais. A crise representa o beco sem saída, o impasse absoluto do regime guiado pela dívida. O segundo pilar está levemente melhor, mas o crescimento baseado em exportações globais não poderá funcionar por muito tempo sem uma forte demanda externa, especialmente dos EUA e da União Europeia.

Por que há tensão nos mercados?

Os investidores financeiros estão extremamente preocupados. Há a perspectiva de um segundo mergulho da economia dos EUA, uma crise em forma de "W" nas economias avançadas. Outro risco é a vulnerabilidade do sistema bancário europeu, na zona do euro e também no Reino Unido. Há também o perigo de que o lento crescimento faça com que empréstimos públicos e privados sejam cada vez mais difíceis de serem recuperados.

Qual a situação na Europa?

Na União Europeia, desde abril de 2010, tem havido um contínuo fluxo de dinheiro público para alguns governos e para os bancos. Isso tem sido acoplado a políticas de austeridade muito drásticas em alguns países, que os arrastou à recessão (-4% na Grécia). Com isso, fica impossível o repagamento da dívida soberana. Provoca a quebra de empresas, além de levar os sistemas bancários na Grécia, na Itália e na Espanha para uma cada vez maior proximidade do colapso. Isso ameaça bancos nos países do coração da zona do euro, especialmente na França.

A situação dos bancos é preocupante?

Os eventos nas Bolsas estão sendo subordinados a situações bancárias críticas. Em 2008, a ameaça às finanças globais veio dos bancos de investimento dos EUA e das grandes seguradoras. O próximo episódio financeiro maior acontecerá quando um segmento do sistema bancário da Europa entrar em colapso na Grécia, Espanha ou Itália. A atual turbulência nas Bolsas é a expressão do pânico do investidor, que tenta antecipar esse tipo de evento. Seu principal efeito é contribuir para a efetiva ocorrência de um desastre em algum lugar. Isso afeta o comportamento do consumidor de renda mais alta e desencoraja investimentos da classe média.

Nos seus livros, o sr. descreve os detalhes do avanço das finanças. Como avalia o atual momento na história do capitalismo?

É possível traçar paralelos com o passado. Mas em nenhum período anterior foram tão elevados a quantidade de ações e títulos, os ganhos dos rentistas e nem foi tão grande a quantidade em circulação do que eu chamo de "capital monetário elevado à enézima potência". Nunca os lucros financeiros foram tão altos em comparação com a atividade produtiva. Há as consequências da globalização neoliberal contemporânea. Nunca as finanças foram tão desreguladas. Nunca a capacidade dos governos de recuperar o controle sobre as finanças foi tão fraca. A extrema fraqueza da liderança política é uma consequência direta disso. Mas há uma nova dimensão da história do capitalismo.

Qual é?

Essa nova dimensão é a crise ambiental, começando com as mudanças climáticas, que se desenvolve em paralelo à ascensão das finanças e de sua crise. Por isso, entramos nas piores condições possíveis numa era em que a civilização - como a concebemos, no Ocidente e no Oriente - está patinando. Nossa era é uma em que as enormes e concentradas forças econômicas estão sendo chamadas a agir em tempos de crise, o que Naomi Klein chama de "a doutrina do choque": setores poderosos da sociedade não apenas protegem eles mesmos, mas usam catástrofes para ampliar sua dominação. A forma como o furacão Katrina foi tratado em Nova Orleans mostra que isso vale para grandes eventos ambientais. Alguma coisa muito perturbadora ocorreu silenciosamente na França e, imagino, em outros lugares: a "luta contra a mudança climática" foi substituída pela "adaptação à mudança climática".

Os governos deveriam jogar mais dinheiro nos mercados financeiros?

As políticas fiscais anunciadas ou já decretadas são fortemente pró-cíclicas. Elas acentuam o beco sem saída do regime de crescimento e a incapacidade que a elite dirigente tem de imaginar qualquer outra maneira de reger a economia. Não haverá fim para a crise mundial enquanto os bancos e os investidores financeiros estiverem no comando, fazendo políticas totalmente dirigidas pelos interesses dos rentistas e dando respostas à crise dominadas por tentativas de dar sobrevida ao regime guiado pela dívida.

O que precisaria ser feito para a retomada da crescimento?

Nos EUA e na Europa a recuperação requer o reestabelecimento do poder de compra das classes baixas e médias, a recriação e expansão da capacidade dos Estados de fazer os investimentos sociais e ambientais necessários e o estabelecimento de um sistema monetário internacional estável, não subordinado ao capital financeiro. As condições para isso vão incluir o cancelamento de boa parte da dívida soberana, assim como de boa parte da dívida doméstica; o reestabelecimento de uma taxação correta para a renda das finanças e do capital (um retorno aos níveis de 1970 seria um começo); o reestabelecimento de um verdadeiro controle público do sistema de crédito; um controle restrito dos fluxos de capital e uma luta efetiva contra os paraísos fiscais.

Qual sua visão sobre o poder das agências de classificação de risco?

O poder das agências de classificação de risco apenas espelha o quanto os governos foram colocados nas mãos das finanças. Mostra a extensão da abdicação do poder dos governos, que mudaram as finanças públicas de uma forma baseada em impostos para uma baseda em dívida. Meu livro mais recente, "Les Dettes Illégitimes, Comment les banques ont fait main basse sur les politiques publiques" (2011) [As dívidas ilegítimas, como os bancos fizeram para manipular as políticas públicas, em tradução livre], enfatiza que, em 1980, a dívida pública da França era de 5% do PIB. Mostro que o crescimento é consequência da diminuição dos impostos para os de renda alta, os ricos em patrimônio e lucros, e dos gastos em programas públicos de financiamento custosos, que se tornaram elefantes brancos, como o Rafale que nenhum país comprou.

E o que ocorre agora?

As agências de risco estão pressionando a elite política francesa para aprofundar as políticas de austeridade. Isso no contexto de uma situação de quase recessão - 0% de crescimento e desemprego acima de 9%. A recessão mundial de 2008-2009 mostrou a fraqueza da indústria francesa e os efeitos desastrosos do jogo no mercado da União Europeia. O que é necessário é uma política industrial e tecnológica comum, um sistema de intervenção comum. É possível que, nos próximos meses, ocorra na França uma reação popular contra os próximos cortes de orçamento.

As revoltas no Norte da África e no Oriente Médio, o movimento dos "indignados" na Espanha e agora os protestos em Londres têm alguma ligação?

Eu adicionaria à lista as enormes marchas em Tel Aviv, com 200 mil pessoas, e em outras cidades contra a alta nos preços dos alimentos e o desemprego. E também esse extraordinário movimento dos estudantes no Chile. Cada um desses movimentos precisa ser analisado com cuidado. São obviamente expressão de uma doença mundial criada pelo caminho tomado pelo neoliberalismo e pela dominação das finanças.

O que os movimentos têm em comum?

Eles têm em comum o fato de terem sido estimulados pela juventude. Em muitos casos são liderados por jovens líderes que estão emergindo do movimento. São todos reações ao extraordinário abismo social num tempo em que o consumismo é projetado mundialmente pela tecnologia contemporânea e pelas estratégias de mídia. Cada um tem suas idiossincrasias nacionais e suas trajetórias políticas. Em cada caso há uma diferente mistura de um componente fundamental democrático, com conteúdo anticapitalista. Reagem ao fato de a eles ter sido negada a posse de bens que outros da sua mesma geração possuem no seu cotidiano. A crescente percepção da corrupção politico-financeira atiça a indignação e, no caso dos jovens mais pobres, os faz usar os únicos métodos que têm à disposição.

Como os partidos conservadores, social-democratas e a esquerda estão reagindo a essa situação?

Para os partidos conservadores, é sempre sobre "lei e ordem". Os social-democratas estão em profunda confusão. As forças da esquerda têm sido fortemente puxadas para o jogo institucional. Tomara que a duração, a severidade e os altos riscos da combinação entre as crises econômica e ambiental permitam o renascimento de uma forma de atividade política que comece a realmente desafiar o sistema. Na Europa, foi na Grécia que a mobilização de massa da juventude mostrou o conteúdo político mais profundo. Espero que seja o modelo para outros países.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Campo de concentração em Itaqui/RS

Correio do Povo

Jornalistas não costumam resenhar livros de dois anos antes. Nada como andar na contramão. Recebi só agora "Nuvens de Chumbo sobre o Cambaí - a Queda de João Goulart, um Campo de Prisioneiros em Itaqui", de Iberê Athaide Teixeira. É uma história incrível e documentada com papéis do inquérito policial militar e do processo. Palavras do autor: "No hangar do aeroclube de Itaqui, devidamente cercados por arame-farpa eletrificado e sob a mira de fuzis com baionetas caladas, ao lado do prefeito e do seu vice, dos vereadores e seus suplentes, também os líderes camponeses e estudantes, sindicalistas, médicos, advogados, cerca de 40 pessoas, que integravam a fina flor da liderança local, mesmo sem mandato eletivo, se viram garroteados em sua liberdade física e moral por cerca de longos e intermináveis 111 dias, no período de 31 de março a 06 de agosto de 1964". Dá para acreditar?

Não foi em Palomas, mas em Itaqui. O tenente-coronel Caetano Pinto Rocha, comandante da Guarnição do 1 Regimento de Cavalaria, mandou prender todo mundo sob acusação de "crimes contra o Estado e seu patrimônio, à ordem política e social, bem como atos de guerra revolucionária". Entre os prisioneiros estavam o então prefeito da cidade, Gil Cunegatto Marques, que tomara posse três meses antes, seu vice, Otoni Monteiro Píffero, vereadores e outros terríveis "subversivos". Os sargentos Pacífico Berne e Catelan foram encarregados da vigilância do campo eletrificado. No lugar do prefeito, foi instalado o fazendeiro Júlio Santiago. A nova Câmara de Vereadores pagou o mico de remeter ofício ao comandante da guarnição e de propor a cassação dos mandatos dos prisioneiros.

Em ofício de 17 de abril de 1964, endereçado ao presidente do IPM, a Câmara de Vereadores rotulou os prisioneiros do campo de "verdadeiros filhos do diabo", determinados a levar a cabo um "processo de comunização do país", um "plano diabólico" do qual não podia estar fora o município de Itaqui.

Não parece coisa de Gabriel García Márquez?

Iberê Teixeira descreve a vida dos prisioneiros: "Segundo lembrança de um dos remanescentes da época do ''campo'', as necessidades fisiológicas mais primárias, como defecar e urinar, eram feitas em uma latrina de madeira, sem cobertura e com apenas três paredes, como aquelas ''casinhas'' plantadas no fundo dos quintais da periferia: um buraco sem assento, feito rés do chão, e o preso ali, acocorado e de calças arriadas, com as vergonhas à mostra, tendo na porta escancarada um soldado empunhando um calibroso fuzil de baioneta".

Não é realismo-fantástico?

O banho, com uma lata de querosene, exigia uma pessoa para segurar o chuveiro improvisado sobre a cabeça do banhista e outra para enchê-lo.

Houve tentativa de suicídio e desespero. Alguns permaneceram mais de 40 dias sem acusação formal. Que "crime" haviam cometido?

Terem apoiado um plano de reforma agrária envolvendo uma grande fazenda chamada de Mata-Fome. Pertencerem ao PTB de Leonel Brizola.

Terem lançado um manifesto "ao povo itaquiense" propondo uma "frente de mobilização popular" em apoio às "reforma de base" do presidente João Goulart. Uma novela surrealista.

JUREMIR MACHADO DA SILVA | juremir@correiodopovo.com.br

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Tunísia: a queda do pequeno ditador amigo do Ocidente

Passa Palavra

As mudanças efectivas são fruto da vontade e do sacrifício do povo, e não impostas por ingerências estrangeiras ou por invasões. Por Esam al-Amin

Quando o povo opta pela vida (em liberdade)
O destino irá responder e passar à acção
A escuridão irá desaparecendo a passos seguros
E por certo serão quebradas as cadeias.
(do poeta tunisino Abul Qasim Al-Shabbi, 1909-1934)

Na noite de fim de ano de 1977, o ex-presidente Jimmy Carter estava a brindar com o Xá Reza Pahlevi em Teerão, chamando àquela monarquia pró-ocidental “uma ilha de estabilidade” no Médio-Oriente. Mas nos 13 meses que se seguirão o Irão teve tudo menos estabilidade. Todos os dias o povo iraniano protestava contra a brutalidade do seu ditador, em massivas manifestações de uma ponta à outra do país.

A princípio, o Xá descreveu os protestos populares como parte de uma conspiração de comunistas e extremistas islâmicos, e reprimiu-os com mão de ferro com o uso brutal da força do seu aparelho de segurança e da sua polícia política. Quando viu que isso não resultou, o Xá teve de fazer algumas concessões às exigências populares, demitindo alguns dos seus generais e prometendo esmagar a corrupção e conceder mais liberdade, antes de acabar por sucumbir à mais importante exigência da revolução, fugindo do país em 16 de Janeiro de 1979.

Mas, alguns dias antes de se ir embora, instalou no poder um primeiro-ministro fantoche na esperança de que este conseguisse sufocar os protestos e facilitar-lhe o regresso. Saltando de país em país, verificou que era indesejável em muitas partes do mundo. Os países ocidentais que haviam elogiado o seu regime durante décadas, agora abandonavam-no todos perante a revolução popular.

32 anos depois, a Tunísia

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Aquilo que levou cinquenta e quatro semanas a conseguir no Irão foi conseguido na Tunísia em menos de quatro. O regime do presidente Zein-al-Abidin Ben Ali representava aos olhos do seu povo não apenas as características de uma ditadura sufocante, mas também as de uma sociedade mafiosa trespassada de corrupção generalizada e de ataques aos direitos humanos.

Em 17 de Dezembro, Mohammed Bouazizi, um bacharel desempregado de 26 anos da cidade de Sidi Bouzid, imolou-se pelo fogo numa tentativa de suicídio. Pouco antes, nesse dia, agentes da polícia tinham apreendido a sua mesa de venda ambulante e confiscado as frutas e legumes que vendia porque ele não tinha uma licença para isso. Quando tentou queixar-se às autoridades, dizendo que era desempregado e que esse era o seu único meio de sobrevivência, foi enxovalhado, insultado e agredido pela polícia. Morreu 19 dias mais tarde, já em pleno levantamento popular.

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O acto desesperado de Bouazizi fez explodir ao rubro a frustração geral quanto aos níveis de vida, à corrupção e à falta de liberdade política e de direitos humanos. Nas quatro semanas seguintes, a sua imolação desencadeou manifestações onde os manifestantes queimaram pneus e gritaram palavras de ordem exigindo empregos e liberdade. Depressa os protestos se espalharam a todo o país incluindo a capital, Túnis.

A primeira reacção do regime foi endurecer a sua atitude e usar a força brutal incluindo espancamentos, gás lacrimogénio e balas reais. Quanto mais violenta se tornou a repressão policial, mais as pessoas foram ficando furiosas e mais foram para as ruas. Em 28 de Dezembro o presidente fez um primeiro discurso dizendo que os protestos eram organizados por “uma minoria de extremistas e terroristas” e que a lei seria aplicada “com toda a firmeza” para punir os protestatários.

No entanto, no começo do novo ano, dezenas de milhares de pessoas, a que se juntaram sindicatos, estudantes, advogados, associações profissionais e outros grupos da oposição, manifestavam-se em dezenas de cidades. No fim da semana os sindicatos apelaram à greve do comércio em todo o país, ao mesmo tempo que 8.000 advogados entraram em greve, paralisando de imediato todo o sistema judicial.

Entretanto, o regime começou a atacar bloguistas, jornalistas, artistas e activistas políticos. Proibiu todo o tipo de discordância, mesmo nas redes sociais. Mas, após quase 80 mortos pelas forças de segurança, o regime começou a recuar.

Em 13 de Janeiro, Ben Ali fez a sua terceira intervenção televisiva, demitindo o ministro do Interior e anunciando concessões sem precedentes, ao mesmo tempo que prometia não se recandidatar nas eleições de 2014. Também prometeu introduzir mais liberdades na sociedade e investigar as mortes de manifestantes. Como esta manobra só acirrou ainda mais os protestos, então ele fez uma alocução ainda mais desesperada, prometendo novas eleições gerais no prazo de seis meses na esperança de parar os protestos massivos.

Como este truque também não resultou, impôs o estado de emergência, demitindo todo o governo e ameaçando fazer sair o exército com ordens para matar. Todavia, como o general do exército Rachid Ben Ammar se recusou a ordenar às suas tropas que disparassem contra os manifestantes nas ruas, Ben Ali não teve outra alternativa senão fugir do país e da cólera do seu povo.

Em 14 de Janeiro, ele e os seus colaboradores mais próximos fugiram em quatro helicópteros para a ilha mediterrânica de Malta. Como Malta se recusou a recebê-los, apanharam um avião para França. Ainda no ar, os franceses fizeram saber que não lhes permitiriam a entrada. Então o avião voltou para trás, para a região do Golfo, até que finalmente foi autorizado a aterrar e bem recebido na Arábia Saudita. O regime saudita tem uma longa história de anfitrionagem de déspotas, incluindo Idi Amin do Uganda e Parvez Musharraf do Paquistão.

Mas, poucos dias antes de o presidente deposto ter deixado Túnis, a sua mulher Leila Trabelsi, ex-cabeleireira conhecida pela sua compulsão das compras, deitara mão a uma tonelada e meia de ouro do banco central e partira para o Dubai com os filhos. A primeira dama e a família Trabelsi são desprezadas pelo público devido ao seu estilo de vida corrupto e aos escândalos financeiros.

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As elites políticas sossobraram no caos, o aparelho de segurança do presidente começou uma campanha de violência e destruição de bens numa derradeira tentativa para semear a discórdia e a confusão. Mas o exército, apoiado por comités populares, tratou rapidamente de os prender e de parar a onda de destruição, impondo o recolher obrigatório em todo o país.

Uma mão cheia de altos funcionários da segurança, como o chefe da segurança presidencial e o ex-ministro do Interior, assim como alguns oligarcas, entre os quais parentes de Ben Ali e membros da família Trabelsi, foram mortos pelas multidões ou presos pelo exército quando tentavam fugir do país.

Entretanto, depois de inicialmente se ter autodeclarado presidente provisório, o primeiro-ministro teve de recuar nessa decisão em menos de um dia para convencer o povo de que Ben Ali fora embora para sempre. No dia seguinte, o presidente do parlamento prestou juramento como presidente, prometendo um governo de unidade nacional e eleições no prazo de 60 dias.

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A maior parte dos países ocidentais, incluindo os EUA e a França, demoraram a reconhecer esta precipitação de acontecimentos. O presidente Barack Obama não disse uma palavra quando os factos estavam a ocorrer. Mas após a deposição de Ben Ali declarou: “os EUA juntam-se a toda a comunidade internacional para testemunhar este combate corajoso e determinado pelos direitos universais que todos temos obrigação de apoiar”. E continuou: “Recordaremos sempre as imagens do povo tunisino procurando fazer ouvir a sua voz. Aplaudo a coragem e a dignidade do povo tunisino”.

Do mesmo modo, o presidente francês Nicolas Sarkozy, não só abandonou o seu aliado tunisino recusando recebê-lo quando o seu avião se encontrava no ar, como deu ordem aos parentes de Ben Ali residentes em apartamentos de luxo em Paris para abandonarem o país.

No dia seguinte o governo francês anunciou que iria congelar todas as contas [bancárias] pertencentes ao presidente deposto, e aos seus parentes directos e por afinidade, assim reconhecendo directamente que o governo francês já estava ao corrente de que esses recursos eram produto de corrupção e de fundos desviados.

A natureza do regime de Ben Ali: corrupção, repressão e apoio ocidental

Um relatório recentemente publicado pela Global Financial Integrity (GFI), intitulado “Fluxos financeiros ilícitos dos países em desenvolvimento: 2002-2009”, calcula que a Tunísia estava a perder milhares de milhões de dólares com actividades financeiras ilícitas e corrupção oficial do governo, num orçamento de Estado inferior a 10 mil milhões de dólares e um Produto Interno Bruto inferior a 40 mil milhões por ano.

O economista e co-autor do estudo, Karly Curcio, sublinha: “A instabilidade política é perpetuada, em parte, pela actividade corrupta e criminosa no país. O GFI calcula que o quantitativo de dinheiro ilegal perdido pela Tunísia devido à corrupção, às luvas, aos subornos, aos preços falsos em negócios e outras actividades criminosas foi em média, entre 2002 e 2008, de cerca de mil milhões de dólares por ano, exactamente 1,16 milhões por ano”.

Um estudo da Amnistia Internacional de 2008, com o título: “Em nome da segurança: práticas irregulares rotineiras na Tunísia”, relata que “estão a ser cometidas graves violações dos direitos humanos relacionadas com as polícias de segurança e de contraterrorismo do governo”. Os Repórteres Sem Fronteiras também publicaram um relatório onde se diz que o regime de Ben Ali era “obsessivo no seu controlo das notícias e da informação. Os jornalistas e os activistas dos direitos humanos são alvo de assédio burocrático, de violência policial e de constante vigilância por parte dos serviços secretos”.

O ex-embaixador dos EUA em Túnis, Robert Godec, admitiu o mesmo. Em telegrama aos seus chefes, datado de 17 de Julho de 2009, recentemente tornado público pelo WikiLeaks, declara acerca das elites políticas: “Elas confiam na polícia para o controlo e a focagem na preservação do poder. E a corrupção no círculo mais restrito está a crescer. Mesmo o tunisino médio tem perfeito conhecimento disso, e o coro de protestos aumenta”.

Até o Congresso dos EUA, quando no ano passado aprovou milhões de dólares de ajuda militar à Tunísia, falava de “restrições à liberdade política, prática de torturas, prisão de dissidentes e perseguições a jornalistas e defensores dos direitos humanos”.

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Não obstante, desde que tomou o poder em 1987, Ben Ali contou com o apoio do Ocidente para manter o seu domínio sobre o país. Claro que o general Ben Ali era um produto da Academia Militar Francesa e da Escola do Exército dos EUA em Fort Bliss, Texas. E completou a sua formação em informações e segurança militar em Fort Holabird, Maryland.

Tendo passado a maior parte da sua carreira militar como oficial de informações e de segurança, desenvolveu, ao longo dos anos, estreitas relações com os serviços de informações ocidentais, especialmente a CIA, assim como os serviços de informações da França e de outros países da OTAN.

Baseando-se numa fonte dos serviços de informação europeus, o canal Al-Jazira relatou recentemente que, quando Ben Ali foi embaixador do seu país na Polónia entre 1980 e 1984 (estranho posto para um oficial de informações militares), ele estava realmente ao serviço dos interesses da OTAN actuando como contacto principal entre os serviços da CIA e das informações da OTAN e a oposição polaca, com o intuito de minar o regime pró-soviético.

Em 1999, Fulvio Martini, ex-director dos serviços secretos militares italianos (SISMI) declarou a uma comissão parlamentar que “em 1985-1987, nós (na OTAN) organizámos uma espécie de golpe (isto é, um golpe de Estado) na Tunísia, colocanto o presidente Ben Ali como chefe do Estado, no lugar de Burguiba”, referindo-se ao primeiro presidente da Tunísia.

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Durante a sua audição de confirmação [no parlamento] como embaixador dos EUA na Tunísia, em Julho de 2009, Gordon Gray reiterou o apoio do ocidente ao regime perante a Comissão de Relações Externas do Senado: “Temos uma longa e estável relação militar com o governo e com os militares. É muito positiva. O equipamento militar dos tunisinos é de origem estadunidense, por isso temos lá um programa de assistência duradouro”.

A importância estratégica da Tunísia para os EUA é também confirmada pelo facto de a sua acção política ser determinada mais pelo Conselho Nacional de Segurança do que pelo Departamento de Estado [Ministério dos Negócios Estrangeiros]. Mais: desde que Ben Ali se tornou presidente, os EUA entregaram ao seu regime 350 milhões de dólares em equipamento militar.

Não há muito tempo, no ano passado, a administração de Obama pediu ao Congresso para aprovar uma venda de 282 milhões de dólares de equipamentos militares para ajudar os serviços de segurança a manterem o controlo sobre a população. Na sua carta ao Congresso, o presidente dizia: “A venda proposta contribuirá para a política externa e para a segurança nacional dos Estados Unidos, ajudando a incrementar a segurança de um país amigo”.

Durante o governo de Bush, os EUA definiram as suas relações com os outros países, não na base da sua grandiosa retórica acerca da liberdade e da democracia, mas sim no modo como cada país abraçava a sua campanha contra-terrorista e a sua acção pró-Israel na região. A Tunísia teve alta classificação em ambos os planos.

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Por exemplo, um telegrama WikiLeaks com origem em Túnis, datado de 28 de Fevereiro de 2008, relatava um encontro entre o subsecretário dos Negócios Estrangeiros David Welch e Ben Ali no qual o presidente tunisino ofereceu a cooperação “sem reservas” dos seus serviços secretos, incluindo o acesso do FBI a “detidos tunisinos” nas prisões tunisinas.

Na sua primeira viagem pela região, em Abril de 2009, o enviado especial para o Médio-Oriente do presidente Obama, George Mitchell, parou em primeiro lugar na Tunísia e declarou que as suas conversações com os representantes locais “foram excelentes”. Elogiou os “fortes laços” entre os dois governos, assim como o apoio da Tunísia às diligências dos EUA no Médio-Oriente. E sublinhou a “alta consideração” do presidente Obama por Ben Ali.

Ao longo do seu reinado de 23 anos, centenas de activistas dos direitos humanos e de críticos, tais como os líderes da oposição Sihem Ben Sedrine e Moncef Marzouki, foram presos, detidos e por vezes torturados depois de se terem pronunciado publicamente contra as violações dos direitos humanos e contra a corrupção massiva sancionada pelo regime. Por outro lado, milhares de membros do movimento islamista foram presos, torturados e julgados em julgamentos falsos.

No seu relatório de Agosto de 2009, intitulado “Tunísia: Violações constantes em nome da segurança”, a Amnistia Internacional diz: “As autoridades tunisinas continuam a praticar prisões e detenções arbitrárias, a permitir as torturas e a servir-se de julgamentos injustos, tudo em nome da luta contra o terrorismo. Essa é a dura realidade que está por trás da retórica oficial”.

Os governos ocidentais estavam perfeitamente ao corrente da natureza deste regime. Mas decidiram não reparar na corrupção e na repressão para defenderem os seus interesses de curto prazo. O próprio relatório sobre direitos humanos do Departamento de Estado, de 2008, pormenorizava muitos casos de “tortura e outros maus tratos cruéis, desumanos ou degradantes” incluindo violações de mulheres presas políticas do regime. Sem comentar nem condenar, o relatório conclui friamente: “A polícia atacou activistas dos direitos humanos e da oposição ao longo de todo o ano”.

O que virá a seguir?

“Caíu o ditador, mas não a ditadura”, declarou Rachid Ghannouchi, o líder islamista do partido de oposição al-Nahdha [Renascimento], que se encontra exilado no Reino Unido há 22 anos. Durante o reinado de Ben Ali, a sua organização foi proibida e milhares dos seus membros foram torturados, ou presos ou exilados. Ele próprio foi julgado e condenado à morte à revelia. Anunciou o seu regresso em breve ao país.

Esta afirmação do líder do al-Nahdha reflectiu o sentimento popular de desconfiança tanto em relação ao novo presidente, Fouad Al-Mubazaa’, e ao primeiro-ministro Mohammad Ghannouchi, que foram membros do partido de Ben Ali, o Partido Constitucional Democrático. E por isso a sua credibilidade é muito suspeita. Durante cerca de dez anos, eles contribuíram para a implementação das orientações políticas do ditador deposto.

No entanto o primeiro-ministro prometeu, no próprio dia em que Ben Ali fugiu do país, um governo de unidade nacional. Em poucos dias anunciou um governo onde se mantinha a maior parte dos ministros do governo anterior (incluindo as decisivas pastas da Defesa, dos Estrangeiros, do Interior e das Finanças), enquanto incluía três ministros da oposição e alguns independentes próximos dos sindicatos e das associações de advogados. Muitos outros partidos da oposição ou foram ignorados ou se recusaram a colaborar em protesto contra o passado do partido dominante.

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Em menos de vinte e quatro horas, tiveram lugar enormes manifestações por todo o país, em 18 de Janeiro, protestando contra a inclusão do partido dominante. De imediato os quatro ministros representantes dos sindicatos e de um partido de oposição demitiram-se do novo governo até à formação de um verdadeiro governo de unidade nacional. Outro partido da oposição suspendeu a sua participação até que os ministros do partido dominante fossem demitidos ou se demitissem dos seus cargos.

Nas horas seguintes o presidente e o primeiro-ministro demitiram-se do partido dominante e autodeclararam-se como independentes. Mesmo assim a maior parte dos partidos da oposição está a exigir o seu afastamento e a sua substituição por líderes nacionais respeitáveis que sejam realmente “independentes” e que tenham as “mãos limpas”. Perguntam como é que o mesmo ministro do Interior que organizou as eleições de Ben Ali há menos de 15 meses poderia agora supervisionar eleições livres e justas.

Não é claro se o novo governo poderá sequer sobreviver à cólera das ruas. Mas o seu anúncio mais significativo foi talvez a amnistia geral e a promessa de libertação de todos os presos políticos no país e no exílio. Além disso criou três comissões nacionais.

A primeira comissão é encabeçada por um dos mais respeitados constitucionalistas, o Prof. ‘Ayyadh Ben Ashour, para tratar das reformas política e constitucional. As outras duas são presididas por defensores dos direitos humanos; uma para investigar a corrupção no Estado, a outra para investigar os assassinatos de manifestantes durante o levantamento popular. As três comissões foram instituídas em resposta às principais exigências dos manifestantes e dos partidos da oposição.

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O 14 de Janeiro de 2011 tornou-se, sem dúvida, um marco na história moderna do mundo árabe. Já uma dezena de candidatos a mártires tentaram suicidar-se imolando-se pelo fogo em protesto público contra a repressão política e a corrupção económica, no Egipto, na Argélia e na Mauritânia. Os movimentos oposicionistas já começaram a liderar protestos que elogiam o levantamento tunisino e denunciando as políticas repressivas e corruptas dos seus governos em muitos países árabes, como o Egipto, a Jordânia, a Argélia, a Líbia, o Iémene e o Sudão.

O veredicto acerca do real sucesso da revolução tunisina ainda está por fazer. Irá ela abortar, seja por lutas internas seja pela introdução de mudanças ilusórias para absorver a cólera do povo? Ou haverá mudanças reais e duradouras, enquadradas por uma nova constituição baseada nos princípios democráticos, na liberdade política, nas liberdades de imprensa e de reunião, na independência da justiça, no respeito dos direitos humanos e no fim das ingerências estrangeiras?

À medida que, nos próximos meses, forem aparecendo as respostas a estas perguntas, tornar-se-á mais clara a questão de saber se haverá um efeito de dominó no resto do mundo árabe.

Mas é possível que a lição mais importante para os políticos ocidentais seja a seguinte: as mudanças efectivas são fruto da vontade e do sacrifício do povo, e não impostas por ingerências estrangeiras ou por invasões.

A queda do ditador iraquiano custou aos EUA cerca de 4.500 soldados mortos, 32.000 feridos, o bilião de dólares [um milhão de milhões], o afundamento da economia, pelo menos 150.000 mortos iraquianos e meio milhão de feridos, e a devastação do país, e a inimizade de milhares de milhões de muçulmanos e de outros povos pelo mundo fora.

Entretanto, o povo da Tunísia derrubou outro brutal ditador com menos de 100 mortos que serão sempre lembrados e honrados pelos seus compatriotas como heróis que pagaram o preço supremo pela liberdade.

Texto original (em inglês) publicado em Pambazuka News. Tradução do Passa Palavra.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Vídeo: Florestan Fernandes - Evocações na Contramão


Na Praça da Sé, um repentista canta, em forma de cordel, a vida de Florestan Fernandes, importante sociólogo brasileiro. O repente abre caminho para os depoimentos dos companheiros de cátedra, de gabinete e de militância de Florestan. Contam de suas idéias, sua visão crítica sobre o Brasil, seus ideais e decepções durante a vida pública. Imagens que marcaram a vida de Florestan: o senado, a universidade, a família. O cordel revela o ponto de vista do povo sobre a história recente do Brasil, com suas lutas e desafios, que como Florestan, insistia em lutar contra as correntes.

Para ver o vídeo clique na imagem ou aqui!


segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

As tragédias urbanas: desconhecimento, ignorancia ou cinismo?

Por paradoxal que possa parecer, a proposta de Reforma Urbana – e a terra urbana, sua questão central- desapareceu da cena política após a criação do Ministério das Cidades

Por Erminia Maricato

Todos os anos, no período das chuvas, as tragédias das enchentes e desmoronamentos se repetem. Os mesmos especialistas, hidrólogos, geólogos, urbanistas repetem as soluções técnicas para enfrentar o problema. A mídia repete a ausência do planejamento e da prevenção aliada à falta de responsabilidade e “vontade política” dos governos (muitos dos jornalistas como os colunistas globais, donos da verdade, se esquecem de que pregaram o corte dos gastos públicos e das políticas sociais durante duas décadas). As autoridades repetem as mesmas desculpas: foram muitos anos de falta de controle sobre a ocupação do solo (como se atualmente esse controle estivesse sendo exercido), mas “fizemos e estamos fazendo...”. Todos repetem a responsabilidade dos qu e ocupam irregularmente as encostas e as várzeas dos rios como se estivessem ali por vontade livre e não por falta de opção.

Tragédias decorrentes de causas naturais são inevitáveis e irão se ampliar com o aquecimento global que atualmente é um fato indiscutível. Um serviço de alerta de alto padrão pode minimizar problemas como mostram exemplos de sociedades menos desiguais e que controlam, relativamente, a ocupação do território. Mesmo no Brasil há soluções técnicas viáveis mesmo se considerarmos essa herança histórica de ocupação informal do solo. Mas não há solução enquanto a máquina de fazer enchentes e desmoronamentos – o processo de urbanização - não for desligada.

Desligar essa máquina e reorientar o processo de urbanização no Brasil implica contrariar interesses poderosos que dirigem o atual modelo que exclui grande parte da população da cidade formal. A imensa cobertura midiática dos acontecimentos silenciou sobre os principais fatores que impedem a interrupção da recorrência e da ampliação dessas tragédias anuais. Vamos tentar dar “nomes aos bois”.

A principal causa dessas tragédias é do conhecimento até do mundo mineral: a falta de controle sobre o uso e a ocupação adequada do solo. Parece algo simples, mas é profundamente complexo, pois controlar a ocupação da terra quando grande parte da população é expulsa do campo ou atraída para as cidades, mas não cabe nela, é impossível.

Controlar a ocupação da terra quando esta é a mola central e monopólio de um mercado socialmente excludente (restrito para poucos, apesar da ampliação recente promovida pelos programas do Governo Federal) viciado em ganhos especulativos desenfreados, é inviável. Os trabalhadores migrantes e seus descendentes, não encontram alternativa de assentamento urbano senão por meio da ocupação ilegal da terra e construção precária, sem observância de qualquer lei e sem qualquer conhecimento técnico de estabilidade das construções. A escala dessa produção ilegal da cidade pelos pobres (i.e. maioria da população brasileira) raramente é mencionada.

Nas capitais mais ricas estamos falando de um quarto a um terço da população - SP, BH, POA -, metade no RJ e mais do que isso nas capitais nordestinas. Nos municípios periféricos das Regiões Metropolitanas essa proporção pode ultrapassar 70% até 90%. Áreas vulneráveis, sobre as quais incide legislação ambiental, desprezadas (de modo geral) pelo mercado imobiliário são as áreas que “sobram” para os que não cabem nas cidades formais, e nem mesmo nos edifícios vazios dos velhos centros urbanos cujos números são tão significativos que dariam para abrigar grande parte do déficit habitacional de cada cidade.

Mas, quando um grupo de sem teto ocupa um edifício ocioso que frequentemente acumula dívida de milhões de reais de IPTU, no centro da cidade formal , ação do judiciário, quando provocada, não se faz esperar: a liminar é rápida ainda que esses edifícios estejam bem longe de cumprir a função social prevista na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. Enquanto isso, aproximadamente milhões de pessoas, sim milhões, ocupam as áreas de proteção ambiental: Áreas de Proteção aos Mananciais, várzeas de rios, beira de córregos, mangues, dunas, encostadas que são desmatadas, etc. Não faltam leis avançadas e detalhadas. Também não faltam Planos Diretores.

Quando se fala em solo urbano ou terra urbana é necessária uma ressalva: não se trata de terra nua, mas de terra urbanizada. A localização da terra ou do imóvel edificado é o que conta. Há uma luta surda e ferrenha pelas melhores localizações, assim como pela orientação dos investimentos públicos que causam aumento dos preços e valorização dos imóveis em determinadas áreas da cidade.

A terra urbana (ou rural) é um ativo da importância do capital e do trabalho. Distribuir renda não basta. É preciso distribuir terra urbana (ou rural) para combater a escandalosa desigualdade social no Brasil.

Quando voltou do exílio, Celso Furtado chamou atenção para a necessidade de distribuir ativos como forma de combater a desigualdade social. São eles, terra e educação. Na era da globalização a terra vem assumindo uma importância estratégica. Conglomerados transnacionais e até mesmo Estados Nacionais disputam as terras agriculturáveis nos países mais pobres do mundo todo. No Brasil ela se encontra sobre intensa disputa no campo ou na cidade.

Infelizmente o Governo Lula ignorou essa questão crucial e a política urbana se reduziu a um grande número de obras, necessárias, porém insuficientes. É verdade que a maior responsabilidade sobre a terra, no âmbito urbano, é municipal ou estadual (quando se trata de metrópoles). Mas é preciso entender porque um programa como o Minha Casa Minha Vida, inspirado em propostas empresariais, causou um impacto espetacular no preço de imóveis e terrenos em 2010.

Financiar a construção de moradias sem tocar no estatuto da propriedade fundiária, sem regular ganhos especulativos ou implementar a função social da propriedade gerou uma transferência de renda para preço dos imóveis. E parte dos conjuntos habitacionais de baixa renda continua a ser construída fora das cidades, repetindo erros muito denunciados na prática do antigo BNH. Os prefeitos que não querem ou não conseguem aplicar a função social da propriedade enfrentam a dificuldade de comprar terrenos a preço de mercado, altamente inflado, para a produção de moradias sociais. Já os governadores, em sua absoluta maioria, ignoram a necessidade de políticas integradas nas metrópoles.

As demais forças que orientam o crescimento das cidades no Brasil estão muito ligadas à essa lógica da valorização imobiliária com exceção do automóvel que ocupa um lugar especial. Ao lado do capital imobiliário, as grandes empreiteiras de obras de infra-estrutura orientam o destino das cidades quando exercem pressão sobre os orçamentos públicos (via vereadores, deputados, senadores ou governantes) para garantir determinados projetos de que podem ser oferecidos ao governante de plantão como forma de “marcar” a gestão. As obras determinam o processo de urbanização mais do que leis e Planos Diretores, pois o que temos, em geral, são planos sem obras e obras sem planos. A política urbana se reduz à discussão sobre investimentos em obras e isso está vinculado à lógica do financiamento das campanhas a ponto de determinar as obras mais visíveis e aquelas que possam corresponder ao cronograma eleitoral.

As obras viárias são priorizadas pela sua visibilidade e, é claro, para viabilizar o primado do automóvel, outro dos principais motivos da completa falência das nossas cidades. Os males causados pela matriz de mobilidade baseada no rodoviarismo, ou mais exatamente pelos automóveis, são por demais conhecidos: o desprezo pelo transporte coletivo, ignorando o aumento das viagens a pé, o alto custo dos congestionamentos em horas paradas, em vidas ceifadas nos acidentes que apresentam números de guerra civil, em doenças respiratórias e cardíacas devido à poluição do ar, na contribuição para o aquecimento do planeta e o que nos interessa aqui, particularmente na impermeabilização do solo.

Parece incrível que em pleno século XXI foi aprovada e iniciada a ampliação da nefasta marginal do Rio Tietê (o governador Serra, candidato à presidência se enroscou no cronograma da obra que ainda levará muito tempo para ser terminada) um equívoco dos engenheiros urbanistas que se definiram pelo modelo rodoviarista para São Paulo e em conseqüência para todo o Brasil. (Ocupar margens dos rios quando estas deveriam dar vazão às cheias do período das chuvas é, como sabemos, contribuir com a insustentabilidade urbana).

Agora os carros e caminhões parados com seus escapamentos despejando poluentes na atmosfera ocupam oito pistas da marginal ao invés das 4 anteriores. Mas essa estratégia não é exclusividade de um partido. Governos de todos os partidos na cidade de São Paulo contribuíram para o deslocamento da centralidade fashion da cidade em direção ao sudoeste produzindo, com pontes, viadutos, obras de drenagem, trens, despejo de favelas, operação urbana e projetos paisagísticos uma nova fronteira de expansão para o capital imobiliário.

As obras de drenagem oferecem um exemplo dos erros de uma certa engenharia que ao invés de resolver, cria problemas. Durante décadas as empreiteiras se ocuparam em tamponar (“canalizar”) córregos e construir avenidas sobre eles, impermeabilizando o solo e permitindo que as águas escoassem mais rapidamente para as calhas dos rios. Agora, quando se trata de reter a água, surge a “moda” dos piscinões. Um mal necessário mas que não passa de paliativo já que o solo continua a ser impermeabilizado e a sua ocupação descontrolada.

Diante desse quadro espantoso, é surpreendente que a questão urbana tenha perdido a importância a ponto de ser quase nulo o seu destaque programas de governo de todos os partidos e estar ausente dos debates nas últimas campanhas eleitorais. Até mesmo a proposta de Reforma Urbana, reconstruída a partir da luta contra o Regime Militar, inspiradora da criação do Ministério das Cidades, que tinha como centralidade a questão fundiária, desapareceu da agenda política. Movimentos sociais estão mais ocupados com conquistas pontuais na área de habitação.

O Ministério das Cidades, criado para tirar das trevas a questão urbana brasileira, combatendo o analfabetismo urbanístico está nas mãos do PP (partido do ex-prefeito e governador Paulo Maluf e ex- presidente da Câmara Severino Cavalcanti) desde 2005. Algumas poucas gestões municipais “de um novo tipo” que surgiram nos anos 1980 e 1990, voltadas para a democratização das cidades, dos orçamentos, das licitações, do controle sobre o solo, ainda tentam remar contra a maré contrariando interesses particulares locais, mas elas são cada vez em menor número diante do crescimento do pragmatismo dos acordos políticos. A Copa e as Olimpíadas e as mega obras que as acompanharão ocupam a preocupação dos gestores urbanos que insistem em concentrar investimentos em novos cartões postais e novas áreas de valorização imobiliária até que a próxima temporada de chuvas traga a realidade de volta por alguns dias e a mídia insista na falta de planejamento e prevenção.

Erminia Maricato é arquiteta, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi coordenadora do programa de pós-graduação (1998-2002), secretária de Habitação de São Paulo (1989-1992) e secretária-executiva do Ministério das Cidades (2003-2005).

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

40 anos do voo da liberdade

Escrito por Umberto Trigueiros Lima (Mazine)
20-Jan-2011


Fazia um calor insuportável no Rio, naqueles dias de janeiro de 1971, 40º à sombra. Lembro que no dia 13 fomos levados para a Base Aérea do Galeão, espremidos em 2 ou 3 camburões pequenos, desde o quartel do Batalhão de Guardas, no bairro de São Cristóvão, onde estávamos recolhidos aguardando o desenlace das negociações do seqüestro. Éramos: eu (Umberto), Antonio Rogério, Aluízio Palmar, Pedro Alves, Marcão, Ubiratan Vatutin, Irani Costa, Afonso, Afonso Celso Lana, Bretas, Julinho, Mara, Carmela, Dora e Conceição.

Fazia sol a pino e os caras pararam os camburões em algum pátio descampado da Base e deixaram a gente lá torrando dentro daqueles verdadeiros fornos; e de puro sadismo e sacanagem riam e gritavam uns para os outros "...olha aí cara, os rapazes estão com calor, você esqueceu de ligar o ar, eles vão ficar suadinhos...". Um outro dizia "...deixa esses filhos da puta esturricarem aí dentro, pode ser que algum deles vá logo para o inferno...". A viagem ao inferno não era possível, pois já estávamos nele, ou seja, nos cárceres da ditadura, há algum tempo. A temperatura dentro dos carros era altíssima, mal conseguíamos respirar pelas poucas frestas de ventilação, os miolos pareciam que iam estourar. Foi um horror!

Ficamos na Base durante todo o dia 13, onde já estavam muitos outros companheiros vindos de outras prisões e de outros estados, e lá nos mantiveram o tempo todo, algemados em duplas. Deram-nos comida podre, tiraram mais impressões digitais, nos obrigaram a tirar fotos nus em diferentes posições. Alguns deles diziam que era para o futuro reconhecimento dos cadáveres...

Perto da meia noite nos levaram para o embarque, nos agruparam ao lado do avião, frente a um batalhão de fotógrafos postados há uns 50 metros de distância, atrás de uma corda. Éramos 70, mais as filhas do Bruno e da Geny Piola, as menininhas Tatiana, Kátia e Bruna. Os flashes espocavam e muitos de nós levantamos os punhos, outros fizeram o V da vitória, enquanto os caras da aeronáutica, por trás, davam socos nas costas de alguns companheiros. Nosso voo da liberdade para o Chile decolou aos dois minutos de 14 de janeiro. Durante o voo, íamos algemados e os policiais da escolta nos provocavam. "...Olha aí malandro, se voltar vai virar presunto, nome de rua...". A tripulação da Varig, mesmo discreta, foi simpática e afável conosco e quando chegamos a Santiago um comissário de bordo veio correndo me contar que havia uma faixa na sacada do aeroporto que dizia "Marighella Presente".

Foram dois longos dias, cheios de tensão, de expectativa, de esperança, todos os sentidos em atenção. Talvez, alguns dos mais longos dias das nossas vidas. Tenho a certeza de que nenhum de nós jamais se esquecerá daqueles momentos. Nas últimas horas da madrugada do dia 14 chegamos ao Chile. Depois de 38 dias de negociações muito difíceis, de risco extremo, mas com muita firmeza e equilíbrio por parte do Comandante Carlos Lamarca e dos companheiros da VPR que realizaram a operação de captura do embaixador suíço, aquela que seria a última grande ação armada da guerrilha urbana brasileira terminava vitoriosa. Começava um novo tempo nas nossas vidas.

Fomos descendo do avião, já sem algemas (os policiais brasileiros da escolta foram impedidos de desembarcar), nos abraçando emocionados, rindo, chorando, cantando a Internacional, acenando para os companheiros brasileiros e chilenos que faziam uma carinhosa manifestação para nos recepcionar.

Um general dos carabineros nos reuniu no saguão do aeroporto e fez uma preleção sobre tudo que estávamos proibidos de fazer no país. Logo em seguida, funcionários do governo da UP e companheiros dos vários partidos da coalizão nos disseram ali mesmo para não levar a sério nada do discurso do tal general. Era o Chile de Salvador Allende que íamos viver e conhecer tão intensamente.

Amanhecia o dia 14 de janeiro de 1971 quando saímos do aeroporto de Pudahuel em ônibus, escoltados pelos carabineros. Amanhecia também aquele novo tempo das nossas vidas e amanhecia o Chile da Unidade Popular, da imensa liberdade, das grandes mobilizações populares, da luta de classes ao vivo e a cores saltando diante dos nossos olhos todos os dias. Pelas ruas de Santiago, a caminho do Parque Cousiño onde ficaríamos alojados, os operários que trabalhavam nas obras do metrô acenavam para a gente, outros aplaudiam, alguns levantavam os punhos cerrados. Imagens que ficariam para sempre na memória, fotografias de um tempo.

Aquele dia parecia infindo, ninguém conseguia pregar um olho, foi um dia enorme, cheio de encontros, de descobertas, de luz. Estávamos bêbados de liberdade e ao mesmo tempo ainda marcados pela sombra da prisão, pelas tristes notícias de mais companheiros covardemente assassinados pelos cães da ditadura.

Na nossa primeira refeição no Hogar Pedro Aguirre Cerda a maioria deixou os garfos e facas sobre a mesa e comeu de colher, como fazíamos na prisão. Quando íamos para os quartos de alojamento, alguns cometiam o ato falho de dizer "...vou para a cela...". Na nossa primeira saída, um grupo se perdeu na cidade e voltou para o Hogar de carona num camburão dos carabineros, motivo de gozação geral.

Lembro da imensa solidariedade e carinho com que fomos recebidos pelos companheiros chilenos e também por estudantes, intelectuais, artistas, operários, pessoas do povo que iam nos visitar, que fizeram coletas para nos arranjar algum dinheiro e roupas, que nos queriam levar para suas casas.

Nas semanas e meses seguintes, pouco a pouco nos fomos dispersando, construindo nossas opções de militância, de vida.

Viveríamos intensamente aquele processo chileno e também nossos vínculos com a luta no Brasil. Encharcaríamo-nos com o aprendizado daquela magistral aula de história e de política "em carne viva". Paixões, alegrias, nostalgias, saudades, amores, amizade, solidariedade, companheirismo, tudo junto, ao mesmo tempo.

Muitos de nós estivemos no Chile até o fim, vivendo e testemunhando os horrores do golpe de 11 de setembro de 1973. Em muitos casos, mais uma vez, escapando por pouco, por muito pouco.

Outros companheiros, por diferentes razões de militância e pessoais, foram viver em outros países. Alguns trataram de organizar suas voltas clandestinas ao Brasil, na esperança de continuar a luta armada. Uns poucos conseguiram manter-se, mas infelizmente, nessa empreitada de luta, vários companheiros foram assassinados.

Honro as suas memórias e me orgulho de termos compartilhado aqueles momentos tão significativos das nossas vidas. Foi o tempo que nos tocou viver. Era um tempo de guerra, mas também de uma enorme esperança.

Na passagem dos 40 anos da nossa libertação, acho que deveríamos dedicar a memória desse encontro fraterno, em primeiro lugar aos companheiros do nosso grupo chacinados pelas ditaduras brasileira e chilena, como também aqueles que marcados por sequelas e feridas psicológicas insuportáveis não conseguiram continuar suas vidas: Daniel José de Carvalho, Edmur Péricles Camargo, João Batista Rita, Joel José de Carvalho, Wânio José de Matos, Tito de Alencar Lima, , Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Gustavo Buarque Schiller.

Em segundo lugar, com saudade, a todos os companheiros daquela viagem para a liberdade de 14 de janeiro de 1971, que já nos deixaram. Com eterna gratidão e reconhecimento ao Comandante Carlos Lamarca e aos combatentes da VPR que realizaram aquela ação revolucionária audaz e vitoriosa.

E também a todos os brasileiros da nossa geração (e aqui não falo em idade, que pode ter ido dos 12 aos 80) que não se acovardaram, que foram capazes de enfrentar aqueles duros e difíceis tempos, quando dizer não poderia significar a morte, "quando falar em árvores era quase um crime...".

Enfim, a todos os que OUSARAM LUTAR!

Umberto Trigueiros Lima (Mazine) é ex-preso político e jornalista.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

100 anos de Noel Rosa

Brasil de Fato

23/12/2010

Pedro Nathan

O poeta da vila conseguiu expressar no samba do morro o sentimento de toda a cidade

Se estivesse vivo, Noel Rosa teria completado 100 anos, em 11 de dezembro. Além de sua contribuição na divulgação do samba, é necessário enfatizar sua preocupação em produzir uma arte de expressão popular. De sua vida e de sua obra ficam valiosas pistas aos que se aventuram nos caminhos do povo. Neste texto, uma breve apresentação do poeta, com algumas contextualizações.

Prazer em conhecê-lo

Noel de Medeiros Rosa, sambista e compositor, abandonou a faculdade de Medicina por uma vida dedicada ao samba. Nascido em 1910, no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Desde cedo teve contato com os moradores dos cortiços e dos morros, bem como com os ritmos que vinham de lá. Como poucos de sua época, soube retratar seu tempo e os tipos urbanos que ali viviam. Para alguns autores, inclusive, sua obra traz elementos para entendermos o processo e as contradições da formação histórica do Brasil.

Baleiro, jornaleiro, motoneiro,

Condutor e passageiro

Prestamista e vigarista

E um bonde que parece uma carroça

Coisa Nossa, Muito nossa!

(São Coisas Nossas, Noel Rosa)

Noel começou sua carreira musical junto com outros garotos de Vila Isabel, dentre eles também estava o compositor Braguinha, no conjunto Flor do tempo, que depois viria a se chamar ‘Bando dos tangarás’. O grupo começou tocando músicas no estilo da embolada nordestina, que era moda no país. É importante lembrar que naquele tempo, o Brasil ainda era basicamente rural.

Minha viola

Tá chorando com razão

Por causa de uma marvada

Que roubou meu coração

(Minha Viola, Noel Rosa)

Mais tarde, Noel trocaria esses ritmos pelo samba. Segundo o escritor Luiz Ricardo Leitão, ele já estaria antevendo a transformação do Brasil em um país urbano. Frequentou os botequins da Lapa do Rio de Janeiro dos anos 1930 e foi o primeiro a fazer parcerias com os novos compositores do morro, dentre os quais, Agenor de Oliveira, Cartola. Também foi um dos pioneiros a gravar suas canções no rádio, que só começava no Brasil (e que por um bom tempo, seria o principal veículo de comunicação de massa). Devido à sua saúde precária, faleceu em 4 de maio de 1937, vítima de uma tuberculose.

Mesmo que, hoje em dia, nem todas as pessoas conheçam quem foi Noel, se já não ouviram suas músicas, ao menos tomaram contato com alguma manifestação que lhe fizesse referência, mesmo indiretamente. Isso porque sua obra influenciou grande parte da produção cultural brasileira dos séculos 20 e 21. Mas se sua criação tem tanto a dizer para nossa realidade, é porque o contexto em que fora produzida nos legou heranças históricas.

Nuvem que passou

O período de produção musical de Noel Rosa - pelo menos no que se refere às músicas que fez a partir de quando se tornara um músico profissional - vai, mais ou menos, de 1929 a 1937. Nesse curto espaço de tempo ocorrem pelo menos três grandes acontecimentos políticos e econômicos de grande relevância: o ‘crack’, ou a quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, resultado da maior crise de superpordução até então ocorrida no capitalismo; a chamada revolução de 1930, processo que colocou Getúlio Vargas no poder, em benefício da burguesia industrial (até então, na República do ‘café com leite’, quem ditava a regra era a burguesia agrária); O “Estado Novo”, ditadura implantada pelo próprio governo Vargas, alguns meses após a morte de Noel (e dois anos depois, eclodiria a II Guerra mundial). Foi, portanto, um período de turbulência, em que a história até parece caminhar mais depressa.

Assim, se a referência tradicional do samba era a da malandragem individual, como um meio de sobrevivência e ascensão social, para Noel, o ponto de partida era o coletivo: a crise geral e a situação das maiorias.

Vivo contente embora esteja na miséria

Que se dane! Que se dane!

Com essa crise levo a vida na pilhéria

Que se dane! Que se dane!

(Que se Dane. Noel Rosa)

É verdade que não podemos reduzir a obra de Noel pura e simplesmente a um reflexo de sua época. Por outro lado, é certo que todos esses acontecimentos forneceram matéria-prima e condições suficientes para que o poeta se tornasse o artista que, de fato, se tornou

No rádio

Nesse mesmo período, o rádio começa a se desenvolver, seguindo política do governo Vargas de estimular sua difusão em âmbito nacional. Nesse bojo, o próprio samba viria a ser apropriado como uma forma de estabelecer uma identidade nacional. A indústria cultural apenas engatinhava. Mesmo assim, alguns dilemas já se faziam presentes:

Quem dá mais?

por um samba feito nas regras da arte

Sem introdução e sem segunda parte

Só tem estribilho, nasceu no Salgueiro

E exprime dois terços do Rio de Janeiro

(Quem dá mais? Noel Rosa)

O samba, enquanto expressão legítima de resistência de um povo, agora, passava a tocar no rádio. Mas nem todos os sambistas tiveram oportunidade de ouvir suas composições em cadeia nacional. Com o desenvolvimento dessa indústria, a música perderia cada vez mais o seu caráter de trabalho coletivo para, em sua forma de mercadoria, aparecer como mero entretenimento. Mesmo tocando nas rádios, era mais um sambinha que se dissolvia no ar:

Fiz um poema pra lhe dar

Cheio de rimas, que acabei de musicar

Se por capricho, não quiseres aceitar

Tenho que jogar no lixo mais um samba popular

(Mais um samba popular, Noel Rosa/Vadico)

Claro que o nível de padronização ainda não era tão grande, se comparado ao que fazem, hoje, as grande gravadoras. Porém, a canção das rádios e dos discos já era, claramente, tratada como artigo de troca. Havia, inclusive, os que comprassem até as autorias das músicas, como Francisco Alves e, anos depois, Roberto Carlos. A seguinte questão já se anunciava: como expressar o canto popular e agradar aos anunciantes, ao mesmo tempo?

Noel viveu essa situação, como todo artista de seu tempo. Não conseguiu dar uma solução para o problema – só mesmo uma revolução poderia resolver isso, já que se tratava de uma consequência do capitalismo internacional. Mesmo assim, fez claramente a opção pela música que vinha do morro, particularmente do Estácio de Sá.

Nasci no Estácio

É muito difícil entender a obra de Noel sem levar em conta a influência dos sambistas do morro do Estácio. Foi nesse morro que o samba ganhou o ritmo e a cadência modernos. Foi lá também que surgiu a primeira escola de samba (Deixa Falar) e, pelo menos, dois instrumentos que até hoje são utilizados em rodas de samba: o surdo e o tamborim. Realmente, o samba carioca nasceu no Estácio. Antes disso, era o samba praticado na casa de Tia Ciata, trazido da Bahia, derivado da umbigada (o semba,de Angola) e muito parecido com o ritmo do maxixe. Ismael Silva, um dos grandes nomes do Estácio e parceiro de Noel em algumas músicas é quem diz:

O estilo (antigo) não dava para andar. Eu comecei a notar uma coisa. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar assim? Aí a gente começou a fazer um samba assim: bum bum patcumbumprugurudum”

(citado em livro de Sérgio Cabral,1996,p. 242)

Percebendo a força social do samba do Estácio, Noel contribuiu para sua expansão. Pelo bem e pelo mal, o samba já não era só um fenômeno do morro, foi apropriado pelas massas.

O samba, na realidade

Não vem do morro nem lá da cidade

E quem suportar uma paixão

Sentirá que o samba então

Nasce do coração

(Feitio de oração, Noel Rosa/Vadico)

Traga a conta, seu garçom!

Em seu tempo, Noel nos deixou pistas para o desenvolvimento de uma arte popular que pudesse traduzir o sentimento geral da população e seus problemas mais candentes. O exemplo que nos deixou, ao ir de encontro ao povo e se expressar através de sua realidade e de seu ritmo, certamente, nos vale até hoje. Na certa, as respostas encontradas na época de Noel não poderão dar conta dos desafios colocados, hoje, para a organização da classe trabalhadora.

Sem dúvida, ainda é necessário, se não ‘subir o morro’, ao menos, ‘pisar no barro’. Contudo, não basta. A sociedade se transforma, as mediações para esse tipo de trabalho também se tornam mais complexas. Antes de qualquer coisa, sabemos que a saída está em nos organizarmos coletivamente – mas, com que roupa?

Pedro Nathan é cartunista e militante da organização Consulta Popular.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Itália insulta o Brasil no caso Battisti, diz filósofo italiano Toni Negri

Thiago Scarelli
Do UOL Notícias
Em São Paulo (SP)

A Itália adota uma postura "insultante" com o Brasil no conflito em torno do ex-ativista Cesare Battisti, porque não se trata de um país desenvolvido, e mente quando diz que vivia um Estado de Direito nos anos 70. A análise é do filósofo italiano Antonio Negri, que passou mais de dez anos preso por seu envolvimento com a militância de esquerda na Itália.

Negri é co-autor, com Michael Hardt, do livro "Império", publicado no Brasil em 2001 e umas das obras mais importantes e polêmicas sobre o processo de globalização. Com Giuseppe Cocco, publicou "Global - Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada", em 2005.

Leia abaixo a entrevista completa, concedida por Negri via telefone desde Veneza.

Quem é Toni Negri

Antonio Negri, 75, é um filósofo italiano, professor da Universidade de Pádua (Itália) e do Colégio Internacional de Paris (França). Entre os anos 50 e 70, participou dos movimentos de esquerda na Itália, condenando tanto a direita quanto o stalinismo. Esteve preso entre 1979 e 1983, depois se exilou na França por 14 anos. Condenado por subversão, o filósofo voltou para a Itália em 1997 e cumpriu pena até 2003. Atualmente, divide seu tempo entre Veneza e Paris, cidades onde desenvolve atividades acadêmicas

UOL - Como o senhor vê a posição da Itália no caso Battisti?

Antonio Negri - A posição italiana é uma posição muito complexa. Como se sabe, o governo italiano é um governo de direita e é um governo que, depois de 30 anos, retomou a perseguição das pessoas que se refugiaram no exterior depois do final dos anos 70, depois do final dos anos nos quais na Itália houve um forte movimento de transformação, de rebelião. E, portanto, o governo italiano retoma hoje uma campanha pela recuperação destas pessoas. Em particular, tentou fazê-lo com a França, para conseguir a extradição de Marina Petrella [condenada por subversão pela justiça italiana] e não conseguiu porque o governo francês, a presidência francesa [Nicolas Sarkozy], impediu. Neste ponto, aparece em um momento exemplar o caso Battisti.

UOL - O que o senhor quer dizer com perseguição? É perigoso neste momento para Battisti retornar à Itália?

Negri - Eu não sei se é perigoso. Mas é certo que ele foi condenado à prisão perpétua e seria para ele uma situação muito grave.

UOL - Um dos motivos que o Brasil cita para manter o refúgio político é a ameaça de perseguição política contra Battisti...

Negri - Mas seguramente ele seria alvo de uma perseguição política e midiática.

UOL - Trata-se, portanto, de um temor com fundamento?

Negri - Veja bem, o governo italiano, depois de 30 anos, quer recuperar, para fazer um exemplo, as pessoas que se refugiaram no exterior. E que se refugiaram no exterior porque na Itália havia uma condição de Justiça que era impossível de aguentar.
UOL - O que significa esse "exemplo"? A punição de Battisti resolveria a questão da violência na Itália nos anos 70?

Negri - Precisamente. Resolveria em dois sentidos: por um lado, se recupera aquilo que eles chamam 'um assassino'; e por outro se esquece aquele que foi um Estado de Exceção, que permitiu a detenção e a prisão preventiva de milhares de pessoas durante estes anos. É necessário recordar que nos anos 70 o limite jurídico da prisão preventiva era fixado em 12 anos. É necessário recordar o uso da tortura e de processos sumários inteiramente construídos sob a palavra de presos aos quais era prometida a liberdade em troca de confissões. Este foi o clima dos anos 70. E não nos esqueçamos que nos anos 70 houve 36 mil detenções, seis mil pessoas foram condenadas e milhares se refugiaram no exterior. E se há quem duvide desses números, e que quer continuar duvidando, basta que deem uma olhada nos relatórios da Anistia Internacional naqueles anos. Portanto, essa é uma questão muito séria. O caso Battisti é, na verdade, um pobre exemplo de uma estrutura, de um sistema no qual a perseguição, insisto na palavra 'perseguição', era acompanhada por enormes escândalos na estrutura política e militar italiana. Houve uma construção, principalmente por meio de uma loja maçônica chamada P2, de uma série de atentados dos quais ainda hoje ninguém sabe quem foram os autores, atentados que deixaram milhares de mortos, por parte da direita. E o governo italiano nunca pediu, por exemplo, que o único condenado por estes atentados seja extraditado do Japão, onde se refugiou. Existe uma desigualdade nas relações que o governo italiano mantém com todos os outros condenados e refugiados de direitas que é maluca. O governo italiano é um governo quase fascista.

UOL - Se houvesse um governo de esquerda na Itália o caso seria o mesmo? [O líder da oposição de centro-esquerda] Romano Prodi faria o mesmo?

Negri - Eu não acredito que Prodi faria o mesmo, mas parte da esquerda faria o mesmo, isso é verdade.

UOL - Como o senhor vê hoje o PAC [Proletários Armados pelo Comunismo, grupo do qual Battisti fazia parte]?

Negri - O PAC era um grupo muito marginal, mas isso não significa que não estivesse dentro do grande movimento pela autonomia. Mas ouça, o problema é esse: eu acho que as coisas das quais foi acusado Battisti são coisas muito graves, mas - e isso me parece importante dizer - estas são responsabilidades compartilhadas por toda a esquerda verdadeira. Não se trata de um caso específico. O Supremo Tribunal Federal do Brasil construiu uma jurisprudência pela qual foram acolhidos outros italianos nas mesmas condições que Battisti.

UOL - E como a Itália deve solucionar esta dívida com o passado?

Negri - Isso deveria ser feito por uma anistia, mas o governo italiano nunca quis caminhar por este terreno. Talvez tudo isso tenha determinado tremendas conseqüências no sistema político italiano, porque foi retirada da história da Itália uma geração ou duas, que poderiam ter conseguido determinar uma retomada política. É uma situação muito dramática. E gostaria de acrescentar uma coisa: o a postura da Itália no confronto com o Brasil a respeito deste tema é uma postura muito insultante. Trata-se de uma pressão feita sobre o Brasil, enquanto um país fraco, depois que os franceses não extraditaram à Itália Marina Petrella. Psicologicamente, trata-se de uma operação política e midiática muito pesada contra o Brasil, na tentativa de restituir a dignidade da Itália, no âmbito da busca de restituir os exilados.

UOL - O senhor acha que as autoridades italianas se sentem especialmente ofendidas pelo fato de a decisão em favor de Battisti vir de um país em desenvolvimento, antiga colônia de um país europeu?

Negri - Seguramente, porque se trata de pobres que reagem contra os ricos, contra os capitalistas.

UOL - O senhor também esteve preso?

Negri - Eu fui detido em 1979 e fiquei na cadeia até 1983, em prisão preventiva, sem processo. Em 1983, houve um eleição parlamentar e eu saí da cadeia porque fui eleito deputado, porque não era ainda condenado. Fiquei preso quatro anos e meio - e poderia ter ficado até 12. Ou seja, quando os italianos dizem que nos anos 70 foi mantido o Estado de Direito, eles mentem. E isso eu digo com absoluta precisão, com base no meu próprio exemplo: fiquei quatro anos e meio em uma prisão de alta segurança, prisão especial, fui massacrado e torturado. Pude deixar a prisão apenas porque fui eleito deputado - do contrário, eu poderia ter ficado na prisão por 12 anos, sem processo. Durante os anos que fiquei na França, exilado, eu fui processado e condenado a 17 anos de prisão, mas que foram reduzidos porque havia uma pressão pública forte em meu fa vor. Quando voltei para a Itália, fiquei outros seis anos presos e encerrei a questão.

UOL - Quais eram as acusações?

Negri - Associação criminosa, gerenciamento de manifestações que eram violentas nos anos 70, em Milão, em Roma, em toda Itália. Mas a primeira acusação que sofri não era de agitador político, por escrever jornais etc., mas de chefiar as Brigadas Vermelhas, o que não é verdadeiro, e de ter assassinado [Aldo] Moro, acusações das quais fui absolvido depois. Entende? Na Itália se busca desesperadamente fazer valer uma mitologia dos anos 70, que é falsa. E a direita no poder hoje busca a qualquer custo restaurar um clima de falsidade e de intimidação para não permitir que a história seja contada como foi.

UOL - Existem aí semelhanças com o governo militar no Brasil?

Negri - Isso eu não sei, porque acho que os governos militares na América Latina foram particularmente violentos. Mas o problema é outro: a questão é que a liberdade, o Estado de Direito e as regras da democracia não podem ser infringidos ou falsificados em nenhuma situação.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Morador sem-teto quer direito à cidade, não apenas moradia

Para pesquisadora, movimentos atuais de moradia querem ter acesso a serviços básicos e equipamentos culturais urbanos disponíveis no centro da cidade


22/12/2010


Marcelo Pellegrini
Agência USP de Notícias

Os conflitos recentes entre os movimentos sociais por moradia no centro de Sao Paulo e a administração municipal apontam para mudança nas exigências destes movimentos, segundo indica a arquiteta Diana Helene Ramos. Ela é responsável por um estudo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, orientado pelo professor Csaba Deak, que analisa as ocupações de edifícios abandonados no centro paulistano. O estudo é uma dissertação de mestrado realizada em 2009.

“Os movimentos de moradia estão evoluindo e não exigem mais apenas moradia, como nos anos 1980. Hoje em dia, eles não aceitam serem isolados na periferia. Querem ter acesso aos serviços básicos de saúde, transporte e educação e aos equipamentos culturais urbanos disponíveis no centro da cidade”, afirma a arquiteta que fez parte do grupo Risco, entidade que presta apoio para os movimentos de luta por moradia na região central da cidade.

Para Diana, o centro de São Paulo passa por um momento de transição. “Em um primeiro momento, a área passou por um esvaziamento e depois começou a ser ocupada pelas classes populares que procuravam acesso aos equipamentos urbanos”, relata.

O centro da capital paulista foi ocupado pelas classes populares tanto no âmbito comercial, com os camelôs, quanto na luta por moradias. No entanto, com o início das políticas de revalorização econômica da região, há cerca de dez anos, começaram as expulsões e reintegrações de posse dos imóveis.

Estas reapropriações de edifícios têm gerado grande insatisfação e protestos dos movimentos sociais. Os últimos protestos, ocorridos em novembro de 2010, ocorreram devido à reintegração de posse do edifício número 895 da Avenida Ipiranga, que culminou com vinte dias de acampamento em frente à Câmara Municipal de São Paulo.

Para a pesquisadora, essas manifestações explicitam “as falhas no modelo econômico adotado para o desenvolvimento da cidade”. De acordo com dados do Ministério das Cidades, de 2006, o déficit habitacional da região metropolitana de São Paulo é de aproximadamente 724 mil pessoas, enquanto estatísticas, de 2008, da Fundação Getúlio Vargas apontam para um déficit habitacional na capital que pode chegar a 1,5 milhão de pessoas. Recentemente, o Censo 2010 do IBGE demostrou que o número de domicílios vagos no País é maior que o déficit habitacional brasileiro. São Paulo é o estado com o maior número de domicílios vagos: o número de moradias vazias na cidade chega a 1,112 milhão.

Realocação dos moradores

Após a reintegração de posse, a prefeitura de São Paulo tem fornecido alternativas aos ocupantes que não satisfazem suas necessidades: um caminhão para o transporte dos móveis das famílias retiradas e o reencaminhamento delas para albergues ou residências de algum conhecido dos moradores expulsos na reintegração.

No entanto, poucos moradores sem-teto possuem outro lugar para ir além dos albergues mantidos pela prefeitura. “Os albergues não são ideais para realocarem famílias com crianças ou mulheres solteiras, mesmo que temporariamente. Nestes locais, mulheres e crianças têm que conviver com dependentes químicos, o que normalmente causa transtornos para ambas as partes. Além disso o albergue não representa uma solução para o problema de falta de moradia”, critica a pesquisadora.

Para Diana, a ocupação de prédios vazios e inutilizados no centro de São Paulo, por si só, já representa uma solução para o déficit habitacional da cidade. “Para resolver o problema habitacional é necessário investir em políticas públicas que devem ser construídas com o diálogo entre os movimentos de moradores sem-teto e a administração pública. É necessário pensar em conjunto e respeitar as necessidades de ambas as partes para resolver o problema”, conclui.


Palavras-chaves: moradia, movimentos sociais, moradores sem-teto