terça-feira, 31 de agosto de 2010

Redução do tamanho da propriedade da terra é política de emprego, moradia, educação, reforma agrária e contra a violência

Em uma visita a um Assentamento de Reforma Agrária na cidade de Bebedouro-SP, em 2002, naquele momento recém constituído, tive a possibilidade de ter uma prosa muito agradável e de intenso aprendizado com a Dona Genoveva* , avó sem terra de 67 anos de idade, migrante da periferia da cidade de Sumaré-SP.

Fazia um ano que ela entrava na vida de pré-assentada e assentada, que aos poucos via os seus sonhos saírem do discurso e do papel. Literalmente, ela vivia na transição metamórfica da casa de lona preta para casa de alvenaria. Com o crédito, a construção da moradia de alvenaria saía aos poucos do projeto. Naquele momento, ela e os seus 16 outros familiares já faziam uso de parte da casa construída, já dormiam e descansavam, mas também ainda precisavam da casa de lona, onde outros lá dormiam e ela cozinhava e preparava o alimento de sua família. Como uma lagarta para virar borboleta, num processo avançado de metamorfose, mas ainda dentro de seu casulo, vivia dona Genoveva, saindo aos poucos da lona para o concreto do seu futuro lar.

Para ela e sua família, a vida na lona preta durou antes outros longos cinco anos. Igual a muitos sem terras, Genoveva teve que passar pela difícil migração comum a quem enfrenta a luta da Reforma Agrária. Seu êxodo passou por Andradina, Iaras, Ribeirão Preto e, finalmente, Bebedouro. Esta travessia é carregada pelas marcas duras de cada desocupação, de cada enfrentamento com os agentes do Estado, com cada preconceito e falta dos itens básicos para sobrevivência.

Mas perguntado a ela, se esta caminhada teria valido a pena, ela não deixa de ressaltar que foi duro todo o processo, no entanto, esta história não consegue se pior do que seria se tivessem eles continuado a vida na periferia de Sumaré. Genoveva não tinha condição de dar aos filhos e netos melhores oportunidades do que as apresentadas pelo trafico de drogas. Desempregada e desamparada pelo Estado, via que o futuro de seus netos, no curto prazo, era serem atraídos pelas roupas e tênis de marca, pelo poder das armas e pelo encanto de sereia do vício oferecidos pela criminalidade, e no médio prazo, o futuro era a vala comum que leva tantos jovens antes de completarem os trinta anos. Por isto, que todo o longo processo de caminhada pela terra, com toda dificuldade, valeu a pena. Porque podia ver seus filhos e netos viverem e serem criados livres, dentro da boa moralidade da coletividade sem terra, distante dos riscos da violência das grandes cidades.

Mais do que isto, ela viu os seus netos serem educados de forma digna. Um dos seus meninos, inclusive, conseguiu uma vaga para estudar agronomia em um dos cursos promovidos para jovens sem terra no Estado do Rio Grande do Sul. Outra menina, já estava se preparando e ansiosa para entrar em um curso de Direito. Mais do que a possibilidade do Diploma, o que a felicitava, era ver os seus netos animados por estudarem, segundo ela, na cidade ninguém quer saber de escola, ninguém respeita ninguém, ninguém aprende nada, coitados dos professores são acuados pelos baixos salários e pela violência do crime organizado. No campo é diferente, infelizmente o salário dos professores também não é dos melhores, porém os alunos são motivados, querem muito estudar e por isto respeitam tanto os professores. Estudar é um objetivo real para estas crianças: estudar para aplicar aquele conhecimento para os seus iguais.

A ex-desempregada Genoveva, juntos com seus filhos já se preparava para tirar a primeira colheita de feijão da terra conquistada e, também, aguardava o crédito do Pronaf para junto com os demais companheiros sem terra iniciar uma produção coletiva e, dali, daquela terra, antes improdutiva, tirar a renda para a sobrevivência e garantir uma mínima qualidade de vida para aqueles que da terra trabalha.

Quantas Genovevas poderiam ver a sua vida mudar do desamparo das periferias públicas para o trabalho coletivo, para o acesso a moradia, educação, segurança, saúde, tudo isto possibilitado pelo acesso a terra. Neste sentido, limitar o tamanho da propriedade rural no Brasil abriria a possibilidade que mais áreas pudessem ser utilizadas para a Reforma Agrária, para a produção de alimentos e para a produção de pessoas felizes.

(*) Os nomes utilizados neste artigo são fictícios

Elcio de Souza Magalhães

Plebiscito Popular pelo Limite da Propriedade da Terra entre 01 e 07 de setembro de 2010, mais informações: http://www.limitedaterra.org.br/index.php

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Mística: Operário em Construção



E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Plebiscito pelo Limite da Terra

Frei Betto

Entre 1 e 7 de setembro o Fórum Nacional da Reforma Agrária e Justiça no Campo promoverá, em todo o Brasil, o plebiscito pelo limite da propriedade rural. Mais de 50 entidades que integram o Fórum farão da Semana da Pátria e do Grito dos Excluídos, celebrado todo 7 de setembro, um momento de clamor pela reforma fundiária em nosso país.

Vivem hoje na zona rural brasileira cerca de 30 milhões de pessoas, pouco mais de 16% da população do país. O Brasil apresenta um dos maiores índices de concentração fundiária do mundo: quase 50% das propriedades rurais têm menos de 10 ha (hectares) e ocupam apenas 2,36% da área do país. E menos de 1% das propriedades rurais (46.911) têm área acima de 1 mil ha cada e ocupam 44% do território (IBGE 2006). As propriedades com mais de 2.500 ha são apenas 15.012 e ocupam 98,5 milhões de ha: 28 milhões de hectares a mais do que quase 4,5 milhões de propriedades rurais com menos de 100 ha.

Diante deste quadro de grave desigualdade, não se pode admitir que imensas propriedades rurais possam pertencer a um único dono, impedindo o acesso democrático à terra, que é um bem natural, coletivo, porém limitado.

O objetivo do plebiscito é demonstrar ao Congresso Nacional que o povo brasileiro deseja que se inclua na Constituição um novo inciso limitando a propriedade da terra - princípio adotado por vários países capitalistas - a 35 módulos fiscais. Áreas acima disso seriam incorporadas ao patrimônio público e destinadas à reforma agrária.

O módulo fiscal serve de parâmetro para classificar o tamanho de uma propriedade rural, segundo a lei 8.629 de 25/02/93. Um módulo fiscal pode variar de 5 a 110 ha, dependendo do município e das condições de solo, relevo, acesso etc.. É considerada pequena propriedade o imóvel com o máximo de quatro módulos fiscais; média, 15; e grande, acima de 15 módulos fiscais.

Um limite de 35 módulos fiscais equivale a uma área entre 175 ha (caso de imóveis próximos a capitais) e 3.500 ha (como na região amazônica). Apenas 50 mil entre as cinco milhões de propriedades rurais existentes no Brasil se enquadram neste limite. Ou seja, 4,950 milhões de propriedades têm menos de 35 módulos fiscais.

O tema foi enfatizado pela Campanha da Fraternidade 2010, promovida pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Todos os dados indicam que a concentração fundiária expulsa famílias do campo, multiplica o número de favelas e a violência nos centros urbanos. Mais de 11 milhões de famílias vivem, hoje, em favelas, cortiços ou áreas de risco.

Nos últimos 25 anos, 1.546 trabalhadores rurais foram assassinados no Brasil; 422 presos; 2.709 famílias expulsas de suas terras; 13.815 famílias despejadas; e 92.290 famílias envolvidas em conflitos por terra! Foram registradas ainda 2.438 ocorrências de trabalho escravo, com 163 mil
trabalhadores escravizados.

Desde 1993, o Grupo Móvel do Ministério do Trabalho libertou 33.789 escravos. De 1.163 ocorrências de assassinatos, apenas 85 foram a julgamento, com a condenação de 20 mandantes e 71 executores. Dos mandantes, somente um se encontra preso, Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, um dos mandantes da eliminação da irmã Dorothy Stang, em 2005.

Tanto o plebiscito quanto o abaixo-assinado visam a aprovar a proposta de emenda constitucional (PEC 438) que determina o confisco de propriedades onde se pratica trabalho escravo, bem como limites à propriedade rural. As propriedades confiscadas seriam destinadas à reforma agrária.

Embora o lobby do latifúndio apregoe as "maravilhas" do agronegócio, quase todo voltado à exportação e não ao mercado interno, a maior parte dos alimentos da mesa do brasileiro provém da agricultura familiar. Ela é responsável por toda a produção de verduras; 87% da mandioca; 70% do feijão; 59% dos suínos; 58% do leite; 50% das aves; 46% do milho; 38% do café; 21%
do trigo.

A pequena propriedade rural emprega 74,4% das pessoas que trabalham no campo. O agronegócio, apenas 25,6%. Enquanto a pequena propriedade ocupa 15 pessoas por cada 100 ha, o agronegócio, que dispõe de tecnologia avançada, somente 1,7 pessoas.

Mais informações e para assinar abaixo-assinado: www.limitedaterra.org.br/

A autogestão como alternativa para os trabalhadores

Passa Palavra

As discussões que em tempos estiveram no centro do movimento trabalhista sobre o controlo e a autogestão pelos trabalhadores estão agora novamente a ser retomadas, tanto por ativistas britânicos como a nível internacional. Por Chris Kane

As discussões que em tempos estiveram no centro do movimento trabalhista sobre o controlo e a autogestão pelos trabalhadores estão agora novamente a ser retomadas, tanto por ativistas britânicos como a nível internacional. A rede de comunistas que produz o The Commune é das mais determinadas defensoras da auto-gestão entre a esquerda radical na Inglaterra e no País de Gales, e tem encontrado, na maior parte, uma resposta positiva. No entanto, ainda existe muita confusão acerca da autogestão, inclusive um forte antagonismo de muitos que se consideram socialistas ou marxistas. Parte da explicação para estas atitudes pode ser encontrada em conceitos errados tanto sobre aquilo que é o capitalismo como sobre a alternativa comunista.

O método do marxismo crítico

Marx, ao contrário de muitos dos seus seguidores, estava preparado para repensar as suas opiniões tendo em conta os acontecimentos históricos, adoptando o ponto alto da última revolução como ponto de partida da seguinte; em contraste com aqueles que advogam o socialismo-vindo-de-cima ele via as massas como as criadoras da história e achava que devíamos aprender com elas. Foram as massas em Paris que criaram a Comuna, não Blanqui ou Marx, da mesma forma que foram os trabalhadores que criaram os sovietes na Rússia, não Lenin ou Trotsky. Por mais de meio século a classe trabalhadora pôs sempre a autogestão na ordem do dia, com especial intensidade nos conflitos no Bloco de Leste, onde vários dissidentes marxistas tentaram conceptualizar um comunismo humanista e emancipatório como alternativa tanto aos regimes de ‘Estado socialista’ como ao capitalismo privado. Desde a “queda do comunismo” tem havido um esforço concertado para arquivar esta experiência no cofre da História, com o capitalismo global a declarar que ‘não existe alternativa’. Se a nossa geração quer ter sucesso em renovar e atualizar o comunismo para o século XXI, então temos que adoptar estes pontos altos anteriores como nossos pontos de partida.

A natureza desumanizante e exploradora da sociedade capitalista não é óbvia para a maioria das pessoas por mais dura que seja na verdade - o capitalismo é, e parece que será sempre, o modo de vida normal. Tal como no filme A Matriz [em Portugal, Matrix] a realidade da sociedade está dissimulada. Marx descreveu o ‘fetichismo das mercadorias’. Chama-se fetiche um objeto ao qual são atribuídos poderes que este não tem, tal como ídolos religiosos criados por humanos que depois permitem ser governados pelas suas próprias criações mitológicas. Vivemos num mundo onde cada vez mais aspectos da nossa vida são mercantilizados; a fabricação das mercadorias com o fim de gerarem lucros é universal. Estas mercadorias assumem características fetichistas ganhando vida própria, separadas dos trabalhadores que as criaram. O mercado passa então a controlar-nos como uma entidade independente cuja liberdade tem de ser garantida.

Estas formas de fetichismo identificadas por Marx não são uma ilusão: no capitalismo as relações entre as pessoas aparentam ser relações entre objetos. Este fetiche até tem levado muitos socialistas a verem o mercado como sendo crucial, prestando relativamente menos atenção às relações sociais de produção. Já experimentámos vários remédios para resolver este problema tais como o planeamento e a regulação mas todos falharam porque acreditámos sempre que o Estado pode controlar o mercado. Ao contrário, em vez de o Estado controlar o capital, é o capital que acaba sempre por dominar o Estado.

O beco sem saída dos conceitos antigos

O antagonismo em relação à auto-gestão por parte daqueles que se dizem socialistas e comunistas revela uma profunda antipatia pelo próprio conceito de revolução social. Apesar do slogan muitas vezes usado de ‘um outro mundo é possível’, o retrocesso no movimento trabalhista é tão grande que estamos presos às políticas do possível - como melhor lutar dentro do capitalismo. Poucos genuinamente consideram de que modo a sua atividade está ligada à criação de uma nova sociedade, ou sequer se o está. Entre as estratégias que existem, a que domina todas as outras é do caminho parlamentar para o socialismo. Sintomático disto é o programa do Partido Comunista Britânico, que propõe o Caminho Britânico para o Socialismo que consiste na busca da criação de “um novo tipo de governo de esquerda, com fortes bases numa maioria constituída pelo Partido Trabalhista, socialistas e comunistas no parlamento de Westminster, um governo que tem origem nas multifacetadas lutas do movimento de massas fora do parlamento”. Aqui o papel das massas é subsidiário em relação ao aparelho de Estado. Isto é refletido no sistema, “nacionalização democrática de setores estratégicos da economia”, que seria feito “numa nova base que garanta a representação tanto do trabalhador como do consumidor na gestão”. A palavra importante aqui é ‘representação’, significando que não é auto-gestão. Esta mentalidade é reproduzida em várias tendências do socialismo que vêm as hierarquias atuais como sendo imunes à mudança.

A alternativa da esquerda revolucionária tradicional consiste em dois elementos chave: a legitimidade do ‘partido’ para assumir a liderança, e uma oportunidade histórica milenarista. O maior destes partidos é o Socialist Workers Party que até advoga ‘o socialismo vindo de baixo’ e a importância dos concelhos operários. Mas a importância dada a estes princípios é corrompida pelo papel fundamental que é dado ao ‘partido revolucionário’. Estes socialistas de partido acreditam que a conquista do poder pelo partido, soberano sobre todas as outras organizações de trabalhadores, constitui o ‘Estado operário’. Em Caminho Revolucionário para o Socialismo, Alex Callinicos [1] afirma que “todo o futuro do socialismo na Grã-Bretanha depende da criação de um partido revolucionário independente”. Encontramos também incongruências em Chris Harman [2], que vê os primeiros passos para a extinção do capitalismo como sendo a nacionalização de “todo o sistema bancário… Da mesma maneira a resposta para a crise energética global… é a nacionalização das indústrias do petróleo, gás e carvão”. Tal como os especialistas equacionaram a intervenção do Estado como sendo “socialismo e segurança social para os ricos”, também Harman exige “socialismo para os trabalhadores”. Estas estratégias podem parecer antagónicas, mas não são: ambas rejeitam o papel das massas como organizadoras plenamente conscientes da sua própria emancipação, prendendo assim as suas aspirações e iniciativa num enquadramento socialista de Estado.

Um conceito vivo de revolução

Presentemente vários defensores do socialismo de Estado digladiam-se dentro do movimento trabalhista, com a maioria dos socialistas e comunistas ainda partilhando conceitos estadistas. Se no início do século XX a principal linha de separação era entre reforma ou revolução, no início do século XXI os comunistas precisam de tornar a linha de separação entre que sistema é que é pretendido: auto-gestão ou estadismo.

Uma revolução será necessariamente difícil. Desde a derrota do Cartismo [3] a nossa classe tem sido infiltrada por um

pacifismo cumpridor da lei, cretinismo parlamentar e mitos de ‘excepcionalismo britânico’. No entanto também temos numerosos exemplos de organização com base na auto-determinação da classe trabalhadora, como os comitês de greve, os grupos de apoio aos mineiros e a revolta anti Poll Tax [4]. O importante para os comunistas atuais é que a ideia de auto-gestão não seja conceptualizada fora da relação entre o capital e o trabalhador. Um método dialético percebe que dentro desta relação conflituosa os trabalhadores não são só escravos do seu salário mas que também estão envolvidos em lutas constantes e criativas. Eles persistem nestas lutas com ou sem as organizações do movimento trabalhista. Uma expressão concreta desta criatividade é que esta não é apenas uma tendência para tentar procurar reformas que melhorem as condições de vida dentro das relações capitalistas: existe uma tentativa de obter mais controlo sobre a vida no trabalho; isto vindo diretamente da resposta às condições de trabalho alienado. Este conceito de revolução flui organicamente da luta de classes em numerosos casos durante o século XX, mesmo que seja bastante mal visto pelo CBI [5], pelo TUC [6], pelo Trotskismo e pelo Estalinismo. Mas esta negação de uma alternativa é apenas concebida externamente, pela intelligentsia da classe média, os gestores socialistas que se querem impor à classe trabalhadora.

Impulsionando a autogestão

A experiência da luta de classes indicou o caminho a seguir em termos de uma disputa pelo poder na qual os limites do controlo dos trabalhadores é empurrado para a auto-gestão. O controlo dos trabalhadores significa mais influência sobre o processo de trabalho e a erosão das prerrogativas patronais, mas com a auto-gestão os trabalhadores teriam controlo total: os gestores seriam abolidos, e a gestão seria eliminada como uma função separada do trabalho em si. O comunista italiano Antonio Gramsci viu no controlo dos trabalhadores o caminho para a vitória no futuro, no sentido que ensinaria a classe trabalhadora a dominar a organização da produção: dessa maneira a auto-gestão significaria uma revolução cultural.

Os órgãos de auto-gestão dos trabalhadores rapidamente entrariam em forte conflito com as instituições do capital. O objectivo dos comunistas é de desmantelar todas as instituições sociais que reforçam o capital. Um conceito reduzido da auto-gestão que prenderia os trabalhadores ao seu local de trabalho seria inevitavelmente auto-destrutivo, como foi o caso em Itália em 1920 e na Polónia em 1981 onde os trabalhadores tomaram conta das fábricas mas não desafiaram o Estado. Por ignorarem o Estado, os anarcossindicalistas e os socialistas parlamentares são gémeos; apenas através de um ataque total ao capitalismo em todas as esferas onde este exerce poder é que é possível ter sucesso. O objectivo é desenvolver as organizações da auto-gestão numa força alternativa de governação. Tal visão significa quebrar a dicotomia falsa entre propriedade do Estado e propriedade privada que tanto cegou a esquerda como vemos pelas suas respostas à crise atual do capitalismo.

O que é a propriedade social?

A recapitalização dos bancos pelo Estado tem sido utilizada como uma oportunidade para exigir mais nacionalizações. Estas exigências têm sido embelezadas por todos os tipos de retórica socialista com pedidos contraditórios de ‘nacionalização’ pelo Estado capitalista ’sob controlo dos trabalhadores’. As nacionalizações são agora chamadas de ‘propriedade social’ e é aconselhado aos trabalhadores que resistem à recessão que adotem este objectivo. A desadequação deste método é facilmente visível nas recentes ocupações de fábricas. Os trabalhadores por trás das ocupações fizeram-nas não porque algum grupo lhes disse mas apenas por terem seguido os seus instintos. Na sua atividade autónoma eles puseram em prática as características essenciais da auto-gestão. Os comunistas precisam de compreender o espírito progressivo dessas formas de luta para que possam entender a sua dinâmica e potencial. No Manifesto Comunista, Marx afirmou que aquilo que distingue os comunistas é que “no movimento do presente eles também representam o futuro do movimento.” Mas responder a este movimento vindo de baixo com uma nacionalização disfarçada como propriedade social não é nem um remédio adequado à luta respectiva ou uma perspectiva válida para um futuro para além do capitalismo.

Um exemplo didático é o Partido Comunista dos Trabalhadores da Bósnia e Herzegovínia que, utilizando lições obtidas da sua própria experiência, diz o seguinte: “A nacionalização dos meios de produção não pode trazer liberdade à classe trabalhadora, visto que as empresas na posse do Estado estão sob o controlo do Estado, ou por outras palavras, sob controle do partido no poder. A exploração continua. Apenas a socialização dos meios de produção pode produzir mudanças reais nas condições da classe trabalhadora. A propriedade social está ligada à auto-gestão socialista… por concelhos operários eleitos por todos os trabalhadores.”

Simplificando, o Estado não é a sociedade. A propriedade implica controle e a propriedade social no sentido marxista implica controlo por toda a sociedade. Isto só pode realmente acontecer quando os trabalhadores-produtores gerem de maneira ativa os recursos da sociedade. O próprio Marx foi enfático na sua oposição às cooperativas patrocinadas pelo Estado “que o Estado, não os trabalhadores, criam”; essas iniciativas teriam “apenas valor se fossem criações independentes dos trabalhadores”. (Crítica do Programa de Gotha).

O fim da alienação e as novas relações sociais

Uma das críticas à auto-gestão tecidas pela esquerda é que não passa da gestão pelos trabalhadores da sua própria alienação. Esta crítica baseia-se na premissa que as organizações de auto-gestão apenas conseguem manter-se estáticas dentro da sociedade capitalista. Isto é outro ponto de vista daqueles que só conseguem imaginar a existência da auto-gestão enquanto inserida no contexto duma futura sociedade comunista, não considerando possível a auto-gestão dos trabalhadores como parte do processo revolucionário. Mas existe uma escola de pensamento que advoga a auto-gestão numa forma que de facto recria a auto-alienação dos trabalhadores e a inevitável dissolução da própria auto-gestão. Essa forma pode ser encontrada no revivalismo presente do socialismo de mercado.

Um exemplo disto é Gerry Gold, que argumenta a favor de “cooperativas de trabalhadores” e de “um mercado genuinamente livre e competitivo”. Isto é em parte uma reação às falhas das economias socialistas de Estado, mas é precisamente a conclusão errada que se pode tirar. O mercado não existe separadamente mas é sim uma manifestação direta das relações de produção. Enquanto se produz para o mercado, competindo e tentando aumentar o rendimento obtido, os trabalhadores inevitavelmente vão entrar em conflito com outras cooperativas de trabalhadores e assumirão o papel de exploradores. Ao invés de propriedade social, teríamos cooperativas capitalistas em competição direta. Tal como locais de trabalho locais e atomizados não conseguem afastar a burocracia, também estas cooperativas desapareceriam numa economia de mercado. Tal foi a experiência na Jugoslávia.

A produção de mercadorias gera relações sociais capitalistas: o trabalho continuaria alienado, uma mercadoria se relacionando com outros humanos através da produção de mercadorias para um mercado. O capital (sobre)vive através da obtenção de cada vez mais valor acrescido do trabalhador que o produz. Por esta razão todos os esforços para controlar o capital sem primeiro destruir a base da produção de valor é derrotista e é inevitavelmente o capital que recupera o seu controlo.

Conclusão

O comunismo deve ser entendido como um sistema com base na disseminação por toda a sociedade da propriedade social e da auto-gestão. Se reconhecermos isto então temos que ter em consideração implicações profundas na organização e estratégia comunista. Uma sociedade destas apenas pode ser criada por organizações que são baseadas em princípios semelhantes. Isto cria uma linha de demarcação na reconstrução do comunismo atual entre os conceitos de auto-gestão e de socialismo de Estado da mesma forma que existia essa demarcação entre os conceitos de reforma e revolução no início do século XX. A maneira em que os comunistas compreendem isto requer bastante mais debate. É interessante notar que tanto na Jugoslávia como na Alemanha Oriental os dissidentes que defendiam a auto-gestão ambos chegaram à conclusão que uma liga de comunistas unida à volta da ideia da emancipação universal era uma alternativa essencial ao Partido Comunista.

É através do movimento de auto-gestão que a consciência amadurece, reunindo conhecimento e força para uma transformação social mais abrangente. Longe de ser um assunto secundário, a auto-gestão é um elemento chave na transformação da economia. Não queremos reorganizar o capital duma maneira diferente. Por outro lado, a auto-gestão também não oferece uma solução integral ao problema de ultrapassar o capitalismo numa nova sociedade comunista. O que oferece, no entanto, é uma estrutura dentro da qual se pode conseguir o fim da alienação do trabalho e a criação de novas relações de produção. É um eixo do processo revolucionário comunista que abole o sistema de classes, transcende o Estado substituindo-o por auto-gestão comunitária, e abole a produção de mercadorias.

Notas

[1] Membro do comitê central do SWP desde os anos 80 e conhecido intelectual trotskista.

[2] Membro do comitê central do SWP desde os anos 60 recentemente falecido.

[3] Movimento social inglês que se iniciou na década de 30 do século XIX tendo como base a carta escrita pelo radical William Lovett, intitulada Carta do Povo, e enviada ao Parlamento Inglês. Naquele documento percebem-se as seguintes exigências:
• Sufrágio universal masculino (o direito de todos os homens ao voto);
• Voto secreto através da cédula;
• Eleição anual;
• Igualdade entre os direitos eleitorais;
• Participação de representantes da classe operária no parlamento;
• Remuneração aos parlamentares.
Inicialmente as exigências não foram aceitas pelo Parlamento e um movimento rebelde teve início. Gradualmente as propostas da carta foram sendo incorporadas e o movimento foi-se enfraquecendo até sua desintegração.

[4] Imposto criado pelo governo de Margaret Thatcher em 1989 na Escócia, e em 1990 no restante Reino Unido, o qual custearia os governos locais (“councils”, semelhantes a prefeituras) por meio de uma taxa única a ser cobrada por habitante. Ele substituiria o sistema anterior, no qual o imposto era calculado de acordo com o valor dos imóveis, de forma semelhante ao IPTU brasileiro.
A população britânica resistiu fortemente à implantação desse imposto, se recusando a fornecer os dados necessários ao governo, se recusando a pagar, e dificultando a punição dos inadimplentes.
A impossibilidade de implantar este imposto, e a derrota do governo frente à população, foi a principal razão da queda de Thatcher como Primeira-Ministra.

[5] Organização sem fins lucrativos onde estão filiadas mais de 200 mil empresas britânicas e que organiza estudos e tenta influenciar o governo britânico além de manter os seus membros bem informados.

[6] Federação de sindicatos do Reino Unido que conta com cerca de 7 milhões de membros e que existe desde 1860.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Oficinas / Empírica

Estou indicando como um pacote instrumental para organização de oficinas a revista Empírica publicada pela ITCP / Unicamp, porque apresenta um bom conjunto de oficinas que podem ser utilizadas em diferentes atividades educativas. Abaixo uma apresentação da própria revista.

Clique no logotipo da Empírica para acessar a revista:

A Empírica é um projeto que se iniciou com uma publicação impressa que sistematiza atividades de incubação da ITCP/UNICAMP desenvolvidas entre os anos de 2005 e 2007 e transformou-se no projeto de um web site que agrega todas as oficinas disponíveis naversão impressa mais novas oficinas postadas constantemente., O lançamento do site deu-se 2009. Pretende-se assim, consolidar um referencial teórico e prático construído cotidianamente pelos formadores e formadoras, trabalhadores e trabalhadoras. Esse projeto cumpre o papel de transformar a prática da incubadora em material de estudo para que esse sirva, novamente, de subsídio para a intervenção na realidade. Por isso, partimos do entendimento de que a extensão deve ser refletida e não só praticada. As investigações empíricas devem ser aprofundadas em forma de texto; as ações devem ser planejadas, avaliadas e transformadas, também, em método de trabalho.

E é desta idéia que surge o nome deste projeto. As palavras “empírico” ou “empirismo” carregam fortes marcas históricas da tradição filosófica e científica e, atualmente, assumem até mesmo um sentido pejorativo. No entanto, ousamos ressignificar, provocar e mudar seu gênero. A Empírica enfatiza uma parte do trabalho da ITCP/UNICAMP que se inspira na prática educativa e cotidiana junto aos EES (Empreendimentos Econômicos Solidários), mas traz à tona também outra “perna” do tripé da universidade: a pesquisa. Assim, Empírica reflete a prática, a experiência, a investigação e a ação na relação entre universidade e sociedade que pensadas, analisadas e recriadas, tornam-se uma forma de conhecimento.

Para a elaboração destas oficinas, buscamos relatos de incubação de diversos(as) formadores(as) que trabalharam na ITCP/UNICAMP. Estes textos descritivos são como diários de campo e cumpriram o papel de registrar uma memória educativa dos(as) formadores(as) e trabalhadores(as) transformando-se, agora, em metodologia de trabalho. Em suma, a Empírica consiste em uma coletânea de oficinas e atividades realizadas na prática de incubação da ITCP/UNICAMP.

Cabe ressaltar que muitas destas atividades foram planejadas e pensadas a partir de referências já existentes, utilizando-se de práticas já conhecidas e divulgadas por meio de aulas, oficinas e bibliografia. Por isso, a Empírica também cumpre o papel de multiplicar instrumentos de educação já conhecidos, mas refletidos, reelaborados e adaptados para o contexto dos Empreendimentos Econômicos Solidários. Por esse motivo, recomendamos algumas leituras e filmes , fonte de muitas reflexões que, direta ou indiretamente, aparecem neste projeto.

É importante enfatizar que as atividades aqui descritas foram elaboradas a partir da idéia de que a Economia Solidária se fundamenta na autogestão, tanto de formadores e formadoras quanto de trabalhadores e trabalhadoras. Esse princípio e forma de organização perpassam todas as áreas, como gestão, produção e comunicação, e todos os momentos da incubação (diagnóstico, planejamento, execução e avaliação). Portanto, é fundamental que estas atividades contribuam para romper a lógica da educação convencional, pautada pela centralização da fala, do conhecimento e do poder. São estratégias práticas que buscam favorecer a expressão e a participação de todos os trabalhadores e trabalhadoras de maneira coletiva e autogerida.

Apesar de o CadernoEmpírica ser especialmente voltado à realização de atividades em Empreendimentos Econômico Solidários, também o recomendamos para outros espaços educativos. Acreditamos que a organização de instrumentos que auxiliem no processo de educação popular é de fundamental importância, pois educação é muito mais que transmissão de conhecimentos: é diálogo - como diria Paulo Freire -, é comunicação, é troca de saberes, é contato corporal, é sensibilização, é praticar um jogo, uma brincadeira, uma encenação, um texto coletivo, é fazer uma abstração por meio do concreto. Buscamos, pois, com o Empírica oferecer elementos que propiciam outras formas de abordagem e integração junto aos empreendimentos populares.


O material disponível é resultado de projetos realizados com apoio do PRONINC/FINEP, RTS/FINEP e CNPq. A versão impressada Empírica só foi possível devido ao apoio do MEC/SESu - PROEXT 2007.


site: http://www.itcp.unicamp.br/empirica

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Limite da propriedade da terra é tema de plebiscito popular

Entre os dias 1º e 7 de setembro, plebiscito popular busca discutir com a sociedade a concentração de terras no Brasil

por Pedro Carrano, de Curitiba (PR)

O Brasil é o segundo maior concentrador de terras do mundo. Uma desigualdade histórica, que se expressa no fato de as unidades de produção com menos de dez hectares ocuparem somente 2,36% de área do território nacional, mesmo sendo a imensa maioria numérica. Este cenário motivou o Fórum Nacional pela Reforma Agrária (FNRA) a propor ao conjunto da sociedade um plebiscito, de caráter popular, pelo limite da propriedade da terra. A população é chamada a organizar, entre os dias 1º e 7 de setembro, uma urna e dar a sua contribuição no tema.

Medida indicada em uma série de países, o limite jurídico da propriedade da terra inexiste no Brasil. O Fórum propõe um máximo de 35 módulos fiscais como a área que um proprietário possa ter em mãos. Propriedades superiores a essa medida seriam incorporadas à reforma agrária pelo poder público.

O módulo fiscal varia de região para região, definido para cada município de acordo com critérios, tais como: proximidade da capital e infra-estrutura urbana, qualidade do solo, relevo e condições de acesso. No Paraná, por exemplo, o enquadramento de 35 módulos fiscais equivale a uma média de 1035 hectares. Já no Amazonas, a área torna-se mais extensa e atinge 3500 hectares.

O Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo é composto por 54 entidades. Somam-se ao plebiscito a Assembléia Popular (AP) e o Grito dos Excluídos, entre outros movimentos sociais. Entidades como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) apóiam a iniciativa. A população é também chamada a participar de uma coleta de assinaturas para um projeto de emenda constitucional (PEC) para seja inserido um quinto inciso no artigo 186 da Constituição, no que se refere ao cumprimento da função social da propriedade rural. De acordo com os organizadores do plebiscito, o voto e o abaixo-assinado são complementares.

"Trata-se de uma questão que interessa a todos, pois estabelecer o limite da propriedade significa democratizar o acesso à terra e possibilitar a fixação do homem no campo, evitando inúmeros problemas que a migração para as cidades causa. A articulação com as comunidades de base é chave, seja pela importância do tema, seja pela rede espalhada em todo o Brasil", avalia Luis Bassegio, militante da Assembleia Popular e do Grito dos Excluídos.

Contexto do debate

Dom Ladislau Biernarski, presidente nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), afirma que o plebiscito dialoga com o tema central da Campanha da Fraternidade de 2010, que toca na desigualdade do capitalismo, com o "Fraternidade e Economia - Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro", e tem o seu desfecho com o "Grito dos Excluídos", realizado na Semana da Pátria, também de 1º a 7 de setembro.

De acordo com a proposta do plebiscito, apenas cerca de 50 mil proprietários teriam sua propriedade limitada, o que ao mesmo tempo liberaria uma área de 200 milhões de hectares para a reforma agrária. "É vantajoso para um país que deixemos de ter quatro milhões de sem terra, onde 2% dos proprietários possuem mais de metade das terras", coloca Biernarski.

O artigo 184 da Constituição Brasileira se refere à função social da propriedade e impõe que o Estado cumpra a reforma agrária. No entanto, logo depois, o mesmo documento também estabelece o direito à propriedade privada e define que a reforma agrária não toque na média propriedade e naquela definida como produtiva.

A proposta do plebiscito busca inserir o limite da propriedade da terra no artigo 186 na forma de um quinto inciso, somado aos atuais quatro incisos que definem a função social da propriedade. No entanto, para atingir na prática a função social da terra, como afirma Biernarski, "será necessário pressão das organizações sociais".

Bassegio, por sua vez, analisa que o tema da terra, em diferentes momentos históricos, enfrentou resistência das frações mais conservadoras da elite brasileira. "Isso tem a ver com o poder da oligarquia agrária no Brasil. Ela é muito retrógrada, não vê que a solução de nossos problemas em boa parte está no campo, ela continua cega em sua visão de que falar em reforma agrária é igual a comunismo. Por outro lado, é necessária uma maior articulação da sociedade no sentido de apoiar efetivamente as lutas dos trabalhadores no campo", propõe.

A questão do elevado consumo de agrotóxicos, a alteração no Código Ambiental em favor do agronegócio, o controle das transnacionais sobre a terra e a água são diferentes debates que atravessam a atual conjuntura e devem estar presentes no trabalho de conscientização que antecede os dias de votação do plebiscito. "Temos que trabalhar a reforma agrária abrangente, que cuide de fato da alimentação da população, sem veneno, em que haja o confisco das terras onde há trabalho escravo", defende Biernarski. No que se refere ao uso do trabalho escravo pelos grandes proprietários, dados recentes da CPT apontam que, em 25 anos, 2.438 ocorrências de trabalho escravo foram registradas, com 163 mil trabalhadores.

Falar na propriedade da terra é tocar no assunto da terra em mãos estrangeiras. O Sistema Nacional de Cadastro Rural do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) elaborou um mapa da distribuição de terras brasileiras compradas por estrangeiros. São 4,3 milhões de hectares distribuídos em 3.694 municípios. "A questão da terra é fundamental para a identidade nacional. O limite da propriedade da terra existe em quase todos os países, a terra não pode nunca perder sua importância, seu significado de ser a primeira referência de um país, quando olhamos sua geografia e sua história", comenta o bispo de Jales e presidente da Cáritas brasileira, dom Demétrio Valentini. (Com informações de Assessoria de Comunicação FNRA)